Escrever e depois reescrever - Escritor C F Scuo
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Escrever e depois reescrever

Se escrever fosse um jogo de futebol, teria dois tempos. O primeiro dedicado a escrever, o segundo, a reescrever.

O escritor trabalha com a linguagem e suas possibilidades de expressão. Assim como em qualquer outro ofício, cabe a ele, portanto, dedicar mais atenção e cuidado ao seu objeto de trabalho. Seu ofício demanda escrever, editar, revisar, reescrever. 

Não que isso seja uma tarefa especial ou exclusiva a escritores. Estamos o tempo todo produzindo e revisando a linguagem. Tome-se, por exemplo, a fala. Alteramos o modo de falar de acordo com cada situação particular.

Se estamos entre amigos, damos maior liberdade à nossa expressão. Se o ambiente é formal, adotamos um modo correspondente para a fala. Além disso, mesmo quando falamos nós constantemente revisamos nossa linguagem. Dizemos uma palavra e imediatamente outra nos vem à mente e logo nos corrigimos.

Assim ocorre com a fala de qualquer pessoa. Assim ocorre sobremaneira com a escrita de qualquer pessoa, em especial porque a escrita se submete à um conjunto de normas instituídas mais rígidas e fixadas no tempo.

Se dizer e se corrigir, se escrever e revisar o texto constituem atos espontâneos do cotidiano, para o escritor eles são elevados a momentos indispensáveis a seu ofício. A reescrita deve ser tratada como uma etapa do ato de escrever.

Rasura como criação


As rasuras e erros fazem parte do processo de elaboração de um texto. Eliminar trechos, inserir outros, modificar termos ou expressões: é de tal exercício que se vai modelando o estilo de quem escreve. E à medida que se escreve e reescreve, tal estilo se aprimora.

Reescrever abrange decisões sobre o material produzido, seleção e, talvez mais importante, distanciamento e questionamento da própria escrita. É quando quem escreve se despe de qualquer pretensão de genialidade, de originalidade, de erudição, tornando-se advogado do diabo de si mesmo.

Sem essa etapa, a criação literária corre o risco de ficar incompleta - ou mesmo de nem ter tido chance de acontecer. Porque o exercício de comentar o que se produziu, de criticar o texto escrito está rico de possibilidade criativa - muitas vezes é quando os aspectos mais criativos aparecem.

Na reescrita se adota o ponto de vista do leitor. Muito além de corrigir tropeços da norma gramatical, busca-se dar mais interesse ao texto, analisar a relevância dos recursos empregados, explorar outras alternativas. Tratar o escrito como a matéria concreta do ofício, eliminando-se excessos. Feito um carpinteiro trabalha a madeira para chegar no que lhe foi demandado.

Aquele trecho que no calor da escrita se considerava excelente? Na etapa de reescrever, ele se revela dispensável, ou mesmo tolo. Corta-se ele sem dó, como se arranca do pomar uma erva daninha para que não se prejudique o cultivo.

Quem joga bem apenas no primeiro tempo, corre o risco de perder a partida. Ao dar forma - objetivamente - ao texto, reescrever o transforma, cria um produto esmerado, com forma e estilo. 

De Kafka a Otto


Registros de escritores do passado revelam o papel fundamental da reescrita. Ela abrange todos os elementos de uma obra: o texto e seu ritmo, a estrutura do enredo, o título, o nome e a caracterização de personagens.

No manuscrito de 'O Castelo' - um dos principais romances do século vinte -, Frans Kafka inicia a narração da história em terceira pessoa.

Em seguida, adota a narração em primeira pessoa. Não fica satisfeito até que a solução lhe assalta: narração em terceira pessoa, sendo que o protagonista passa a ser referido somente pela letra inicial de seu nome, K.

Os poemas datilografado de Hilda Hilst mostram o quanto ela modificava e corrigia seus poemas. Elaborava, experimentava versões, eliminando e incluindo trechos. O poema originalmente escrito geralmente divergia daquele que, após a reescrita, ganhava publicação.

Disponíveis na Academia Brasileira de Letras - ABL -, os manuscritos de Machado de Assis revelam as indas e vindas do escritor do Cosme Velho quando produzia suas obras. O mesmo processo se verifica na produção de Clarice Linspector.

A etapa de reescrever inclui também a intervenção de terceiros. Muitas vezes, a forma final de um texto surgirá pelo debate entre escritores e editores ou revisores. Havia no passado uma relação mais próxima e íntima entre editores e escritores que, infelizmente, está se perdendo.

Frankenstein, de Mary Shelley, teve a revisão e contribuição editorial de seu marido. Ezra Pound editou TS Eliot, ambos poetas estrangeiros.

Deve-se, contudo, jamais se abandonar a cautela. Pois há casos de escritores que, de tão atormentados pelo perfeccionismo, caíram vítimas de um reescrever interminável. Um caso notório foi de Murilo Rubião, que reescrevia obsessivamente os próprios contos.

Outro compulsivo reescritor era Otto Lara Resende. Ele modificava profundamente não apenas manuscritos, mas também as obras publicadas. Vítimas de um segundo tempo do jogo da escrita que se prorrogava repetidamente, Murilo e Otto tiveram pequena quantidade de obras publicadas - ambos escreveram mais pelo jornalismo.

Escrever tem os seus percalços. O melhor é tentar jogar os dois tempos com fair play.




Por CF Scuo
Escritor

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