Reescrita e Revisão: Técnicas do Processo de Escrita

Imagem em estilo tipográfico mostrando uma mão pequena segurando um bisturi e cortando horizontalmente uma folha de papel com letras maiúsculas e minúsculas, revelando novas letras no interior do corte — metáfora visual para escrita, edição e reescrita.
Se escrever fosse um jogo de futebol, teria dois tempos. O primeiro dedicado a escrever, o segundo, a reescrever.

O escritor trabalha com a linguagem e suas possibilidades de expressão. Assim como em qualquer outro ofício, cabe a ele, portanto, dedicar mais atenção e cuidado ao seu objeto de trabalho. Seu ofício demanda escrever, editar, revisar, reescrever.

O que se entende por “processo de escrita” nas pesquisas contemporâneas é uma sequência iterativa: rascunho inicial, revisão, reflexão crítica e novas versões; esse ciclo repetido transforma ideias brutas em textos com forma e função definidas.

A literatura sobre esse processo enfatiza que escrever é um trabalho artesão - com etapas distintas de geração e de refinamento. A reescrita constitui uma prática cognitiva que envolve tomada de perspectiva do leitor, reorganização e seleção de material.

Não que isso seja uma tarefa especial ou exclusiva a escritores. Estamos o tempo todo produzindo e revisando a linguagem. Tome-se, por exemplo, a fala. Alteramos o modo de falar de acordo com cada situação particular.

Se estamos entre amigos, damos maior liberdade à nossa expressão. Se o ambiente é formal, adotamos um modo correspondente para a fala. Além disso, mesmo quando falamos, nós constantemente revisamos nossa linguagem. Dizemos uma palavra e imediatamente outra nos vem à mente e logo nos corrigimos.

Assim ocorre com a fala de qualquer pessoa. Assim ocorre sobremaneira com a escrita de qualquer pessoa, em especial porque a escrita se submete a um conjunto de normas instituídas mais rígidas e fixadas no tempo.

Se dizer e se corrigir, se escrever e revisar o texto constituem atos espontâneos do cotidiano, para o escritor eles são elevados a momentos indispensáveis de seu ofício. A reescrita deve ser tratada como uma etapa do ato de escrever.

Rasura como criação


As rasuras e erros fazem parte do processo de elaboração de um texto. Eliminar trechos, inserir outros, modificar termos ou expressões: é de tal exercício que se vai modelando o estilo de quem escreve. E à medida que se escreve e reescreve, tal estilo se aprimora.

A crítica genética - campo que estuda manuscritos, rascunhos e variantes - demonstra que muitas decisões estéticas aparecem justamente nas rasuras. O trabalho de formação do estilo inclui cortes e reelaboração do texto. Analisar rascunhos permite compreender a trajetória intelectual do autor e as razões formais por trás de escolhas textuais que, na versão final, parecem espontâneas.

Reescrever, portanto, incluirá decisões importantes sobre o material produzido, seleção e, talvez mais importante, distanciamento e questionamento da própria escrita. É quando quem escreve se despe de qualquer pretensão de genialidade, de originalidade, de erudição, tornando-se advogado do diabo de si mesmo.

Sem essa etapa, a criação literária corre o risco de ficar incompleta - ou mesmo de nem ter tido chance de acontecer. Porque o exercício de comentar o que se produziu, de criticar o texto escrito está rico de possibilidade criativa - muitas vezes é quando os aspectos mais criativos aparecem.

Na reescrita se adota o ponto de vista do leitor. Muito além de corrigir tropeços da norma gramatical, busca-se dar mais interesse ao texto, analisar a relevância dos recursos empregados, explorar outras alternativas. Tratar o escrito como a matéria concreta do ofício, eliminando-se excessos. Feito um carpinteiro, trabalha a madeira para chegar no que lhe foi demandado.

Aquele trecho que no calor da escrita se considerava excelente? Na etapa de reescrever, ele se revela dispensável, ou mesmo tolo. Corta-se ele sem dó, como se arranca do pomar uma erva daninha para que não se prejudique o cultivo.

Quem joga bem apenas no primeiro tempo, corre o risco de perder a partida. Ao dar forma - objetivamente - ao texto, reescrever o transforma, cria um produto esmerado, com forma e estilo.

De Kafka a Otto


Registros de escritores do passado revelam o papel fundamental da reescrita. Ela abrange todos os elementos de uma obra: o texto e seu ritmo, a estrutura do enredo, o título, o nome e a caracterização de personagens.

Estudos que analisam os rascunhos de 'O Castelo' - um dos principais romances do século XX - mostram como Franz Kafka experimentou alternativas até chegar à forma que conhecemos. No manuscrito, ele inicia a narração da história em terceira pessoa. Em seguida, adotou a narração em primeira pessoa.

Não ficou satisfeito até que a solução lhe assalta: narração em terceira pessoa, sendo que o protagonista passa a ser referido somente pela letra inicial de seu nome, K. Essa e outras variações do manuscrito revelam a importância das mudanças sucessivas para a configuração do sentido e do efeito estético da obra literária.

Acervos e edições críticas de poetas contemporâneos - que reúnem cadernos, datilografias e rascunhos - também trazem ricos exemplos da segunda etapa do jogo. No caso de Hilda Hilst, os estudos de seus manuscritos indicaram práticas de revisão que vão de pequenas alterações lexicais a reorganizações maiores do poema, o que mostra a reescrita como laboratório de experimentação poética.

Disponíveis na Academia Brasileira de Letras (ABL), os manuscritos de Machado de Assis revelam as idas e vindas do escritor do Cosme Velho quando produzia suas obras. O mesmo processo se verifica na produção de Clarice Lispector.

A etapa de reescrever inclui também a intervenção de terceiros. Muitas vezes, a forma final de um texto surgirá pelo debate entre escritores e editores ou revisores. Citando exemplos da literatura internacional, Frankenstein, de Mary Shelley, teve a revisão e contribuição editorial de seu marido. Ezra Pound editou T. S. Eliot.

A história editorial apresenta-se rica dessa participação de editores (ou terceiros) nas sucessivas versões de um texto. O diálogo entre autor e editor pode introduzir cortes, reorganizações e sugestões de ritmo, alterando profundamente o produto final. Em muitos casos, a coautoria editorial - quando bem conduzida - enriquece o texto sem anular a autoria do escritor.

Deve-se, contudo, jamais se abandonar a cautela. Pois há casos de escritores que, de tão atormentados pelo perfeccionismo, caíram vítimas de um reescrever interminável. Um caso notório foi de Murilo Rubião, que reescrevia obsessivamente os próprios contos.

Outro compulsivo reescritor era Otto Lara Resende. Ele modificava profundamente não apenas manuscritos, mas também as obras publicadas. Vítimas de um segundo tempo do jogo da escrita que se prorrogava repetidamente, Murilo e Otto tiveram pequena quantidade de obras publicadas - ambos escreveram mais pelo jornalismo.

Há um limiar em que o refinamento contínuo passa a impedir a produção e a circulação do trabalho. O perfeccionismo extremo tende a reduzir a visibilidade do autor e a limitar o número de obras publicadas. A gestão do processo, decidindo quando parar e quando publicar, é, ela mesma, uma habilidade do ofício.

Escrever tem os seus percalços. O melhor é tentar jogar os dois tempos com fair play.




Por CF Scuo
Escritor