Entre a técnica e a voz popular: Afrânio Coutinho e os limites da crítica literária

Cena tipográfica 3D em papel off-white: fileira de livros impressos alinhados como numa biblioteca, um livro aberto em primeiro plano e três volumes se erguendo da folha em diferentes ângulos; pontos tipográficos formam sombras e partículas; aparência de impressão mecânica.
Afrânio Coutinho (1911–2000) tornou-se um dos principais nomes da crítica literária brasileira do século XX. Formado inicialmente sob a influência da chamada crítica “impressionista” herdada do século anterior, ele buscava compreender as obras pelos traços históricos e circunstâncias da vida do autor.

Nessa fase, chegou a endossar visões deterministas correntes em sua época - inclusive discursos eugenistas, então prevalentes, a respeito de raça, que legitimava preconceito e racismo. 

Entretanto, em 1942-47, quando viveu em Nova York como editor do Reader’s Digest, Coutinho teve contato direto com correntes críticas de matriz formalista. Durante sua passagem pelos Estados Unidos, ele se familiarizou com o formalismo eslavo.

Essa perspectiva colocava ênfase na análise interna da obra - no estilo, na forma e no valor estético dos textos, evitando explicações meramente biográficas, sociais ou “biológicas”. As questões históricas, sociais, políticas, religiosas, econômicas estariam incorporadas no plano estético. Não existiriam na obra tal como existem na realidade.

Embora não negasse totalmente a influência da história e da sociedade, Coutinho passou a entender que estes são transformados pela obra literária. A crítica deveria, portanto, centrar-se nas qualidades intrínsecas do texto - suas técnicas linguísticas, enredo, estrutura narrativa, personagens entre outros. Relegava-se os fatores extrínsecos (como a biografia do autor) a influências secundárias.


Do rodapé à especialização

As propostas de Coutinho causaram polêmica. De um lado, críticos conservadores, com forte filiação ao determinismo social e biológico na interpretação literária, acusaram-no de rejeitar precipitadamente a dimensão social da literatura. De outro, era comum que boa parte da crítica literária do período fosse ainda exercida de forma improvisada em jornais.

Popularmente chamada de crítica de rodapé, consistia em curtas resenhas escritas por jornalistas, professores ou advogados sem formação específica, que julgavam livros recém-lançados com base em impressões imediatas. Para Coutinho, era marcada pela tentação do pedantismo, do dogmatismo, da compenetração. Um campo fértil às idiossincrasias e preconceitos individuais.

O trabalho de Afrânio Coutinho alteraria os rumos da análise literária no país. Ele defendia que a crítica literária ocorresse em livros e periódicos dedicados, e não de forma improvisada em breves colunas de jornal. Devia-se estruturar uma rede abrangendo desde a formação acadêmica para o preparo teórico de críticos literários até a sua profissionalização.

Criou-se uma dissidência entre praticantes da crítica de rodapé e a proposta de uma crítica acadêmica, pautada por método rigoroso e técnico. Os defensores do rodapé acusavam Coutinho de promover novos princípios sem nunca os ter aplicado a qualquer livro. Em vez de criticar livros, ele criticava a crítica exercida nos jornais.


A nova crítica no Brasil

Em 1955, sob a direção de Coutinho, foi publicado o primeiro volume de "A Literatura no Brasil", um extenso compêndio em vários tomos sobre a história literária brasileira. A obra foi inovadora por se alinhar ao conceito de crítica difundida por ele e por seu modo de elaboração coletivo. Cerca de 50 especialistas, entre professores e críticos de universidades de todo o país, contribuíram para sua elaboração.

Dividido em três partes, o livro apresentava um panorama sistemático da literatura nacional, do Renascimento à época contemporânea. A ênfase residia na dimensão estética, abordando a qualidade literária dos textos, sem os subordinar à aspectos históricos nem a dados biográficos. Por isso, "A Literatura no Brasil" estabeleceu um divisor de águas em relação às histórias literárias anteriores.

Colocava-se em prática uma crítica mais rigorosa e profissionalizada, deslocando-se a crítica impressionista e insipiente que dominava jornais para segundo plano. Não estava, entretanto, ausente de limitações, a começar pela introdução de um maior distanciamento entre a crítica, o fazer literário e o público leitor, além do caráter mais elitista, norteado por noções de "alta cultura".

Nesse sentido, o aperfeiçoamento técnico promovido por Coutinho se marcou tanto pela importância quanto por suas limitações. Apesar da roupagem renovadora, a crítica literária continuou presa a um ideal de erudição eurocêntrica, preservando o conservadorismo. Ideologias de séculos anteriores - em especial a colonialidade e a eugenia  - ainda ecoavam nas vozes de críticos e historiadores literários. 

Ao privilegiar o texto como objeto autônomo, a crítica "técnica" reproduziu uma hierarquia cultural que separava o literário do comum, o erudito do popular, o masculino do feminino. A postura formalista tendeu a despolitizar as práticas da literatura, apagando suas condições históricas e sociais de produção, reforçando exclusões já sedimentadas.

Se colocou em questão a crítica de rodapé, ela deixou de jogar luz sobre si mesma. Preservava o hiato entre o estudo sistemático da literatura e o sistema de valores e de relações sociais no qual se baseava.


Mário e a literatura

Se ajudou a aprimorar o estudo literário no Brasil, levando ao abandono da perspectiva determinista, Coutinho não quebrou com os vieses da colonialidade importados do estrangeiro. Sua renovação foi menos radical do que a visão dos primeiros modernistas, em particular de Mário de Andrade (1893–1945).

Um dos líderes do movimento modernista de 1922, Mário antecipou várias das ideias de Coutinho. Em textos ainda dos anos 1930, ele reivindicava a ruptura com antigas escolas literárias, como o romantismo e o parnasianismo, que engessavam o autor no passado. Ele e seus pares defendiam a liberdade criativa, que deveria dialogar com a tradição e com fontes diversas - tanto eruditas quanto populares.

Ao mesmo tempo, Mário fazia questão de sublinhar a importância da cultura coletiva. No diálogo ficcional "O banquete", de 1944-1945, ele afirmava que a “criação livre é uma quimera, porque ninguém não é feito de nada, nem de si mesmo apenas”. Toda criação seria “um tecido de elementos memorizados, que o criador agencia de maneira diferente”.

Em outras palavras, Mário entendia que a arte não brota do nada. Ela se cria a partir de um conjunto de referências, a partir das quais o artista compõem algo novo. Essa postura questionava o ideal romântico do "gênio isolado". Também estava ligada à proposição da antropofagia do estrangeiro, contra a ingenuidade de absorção do que vinha de fora.

Por fim, Mário favorecia uma abordagem mais democrática da arte. Valorizava o folclore e a cultura popular como fundamento de uma identidade nacional e protestava contra o elitismo cultural. Tão importante quanto o cânone era a expressão popular. O autor deveria mergulhar na diversidade de práticas e expressões brasileiras, misturá-las à bagagem literária do passado. Fundi-las.

Como os demais de sua geração modernista, Mário endossava a noção de autor como personalidade criativa, o que exigia uma visão crítica do processo artístico. Tanto a arte quanto o humano - seus modos de ser, sentir, agir - ganham existência pela coletividade e pela cultura. A tradição desaguava no no presente em que, pelo trabalho pessoal do autor, textos de diversas origens se encontravam na criação do novo.

Vítima de seu próprio tempo, o projeto modernista também reproduziu a colonialidade. Teve o mérito, no entanto, de abrir caminhos para que gerações posteriores explorassem outras possibilidades de práticas literárias em que a sombra colonial se projetava menos intensa.


Modernismo pela metade

A reforma introduzida por Coutinho afastou o determinismo da crítica, tornando o estudo literário mais rigoroso, mas a ela faltou incorporar o traço radical da visão de Mário de Andrade. O formalismo de Coutinho, idealizando a singularidade de uma obra literária, atritava-se com perspectivas democráticas e de valorização de fontes populares adiantadas por Mário.

Resultou-se numa crítica de tendência erudita, conservadora e desatenta a suas próprias limitações. Em vez de insistir nas questões centrais da identidade brasileira, da relação entre nacional e estrangeiro, e da cultura popular e a democracia ou não de suas manifestações, a crítica a partir de Coutinho reciclou, com mais veemência do que a presente em Mário, ideologias coloniais.

A proposta de uma “literariedade pura” tornava invisível as condições políticas e de poder que envolviam, inclusive, a própria atividade crítica e da academia. Tornou-se, portanto, um obstáculo para o avanço da democracia na cultura e para a expressão de sua identidade.

Nos anos 1980, a crítica brasileira importou o conceito de pós-modernismo - outro ato de colonialidade - e anunciou o fim do modernismo artístico. Ficaram pelo caminho os antigos sonhos modernistas de arte mais democrática e de resistência cultural. Relegava-se a segundo plano a intuição antropófaga contra o colonialismo.

O país retomou, em parte, velhos padrões ao ingressar no século XXI. Porém, permanece claro que o legado do modernismo ainda não se esgotou quando, por exemplo, tomou força o debate a respeito do cânone brasileiro, recuperando vozes excluídas por motivos não estéticos. Como observou Coutinho, o modernismo, ainda que inacabado, espera ser reanimado por nova energia crítica.

Como alguém que sobreviveu a um infarto e agora precisa de um choque revigorante, para que o coração volte a pulsar revigorado.
 



Por Ana Clara Melo
Crítica Literária