Não Há Nada de Novo Debaixo do Sol.
Apesar de o Modernismo introduzir a ideia de originalidade, o fato é que a literatura opera a partir de uma mesmice. Toda história possui um narrador.
Uma história só ganha existência ao ser narrada, pois é a criação de uma pessoa - o autor ou a autora - cuja ação se manifesta no texto pela figura do narrador. Não há como uma história existir sem alguém que a crie.
Ainda assim, nos séculos recentes, muito esforço se gastou em modificar detalhes na busca do carimbo da originalidade.
Vaidade de vaidades.
E o narrador se caracteriza pela aparente pobreza de possibilidades de variação. Ele pode ser em primeira ou em terceira pessoa. Isso é um fato desde o início da escrita. Nada de novo debaixo do sol.
A narração parece uma escala entre esses extremos. De um lado, o narrador em terceira pessoa, onisciente, fora da história, com acesso a todos os personagens - seus sentimentos - e a todos os acontecimentos.
De outro lado, o narrador em primeira pessoa conta a história de seu lugar: subjetivo, parcial e único, manifestando-se talvez a partir do fluxo de consciência.
"Ah, mas o 'Ulisses', livro de James Joyce, inaugurou o romance moderno e foi muito inovador", diriam os defensores da originalidade modernista. Sim, o livro introduziu inovações - liberando o romance de amarras herdadas do passado.
Não passou, contudo, de uma inovação do idêntico: o narrador em terceira e em primeira pessoa, como era de se esperar. Seu brilho deve-se, também, ao conservadorismo da literatura (reflexo do conservadorismo social?) que o livro veio quebrar. Mesmo as tentativas pós-modernas de "escrita objetiva" são, paradoxalmente, artifícios narrativos.
Por isso o verdadeiro sonho de originalidade é apagar o sol e colocar a lua em seu lugar ou, então, a noite estrelada com a Via Láctea ao centro. O sonho é criar a história sem narrador.
Só há um problema: o narrador está no centro daquilo que chamamos de literatura em prosa. Ele compõe a literatura, faz parte dela, é ela.
Celebrar o Humano
Desde cedo se identificou (pela filosofia) que a arte é inútil. Ninguém precisa dela para sobreviver. Entretanto, a partir de tempos imemoriais, talvez a partir do surgimento do humano, criamos arte e dela usufruímos.
Não é bom escutar música? Ver um filme no cinema? Contemplar um belo quadro na parede? A arte existe pelo prazer que provoca, prazeres estes que se diferem dos ligados ao corpo.
Também é bom ouvir o barulho da chuva, da água a correr; bom contemplar a paisagem de uma montanha, bom o contato entre os corpos. E melhor ficam à medida que nos desligamos de nós mesmos, que nos entregamos à natureza e ao seu aqui e agora.
Nenhum desses prazeres corresponde à arte, porque ela só existe se há o humano. A música nos traz sons humanizados. A arquitetura, a pintura e a fotografia nos abrem aos olhos paisagens humanizadas.
Já não é somente o corpo de um primata que vê; mas, no interior do primata, o humano que altera os processos sensoriais, passando a ver, escutar e sentir cada coisa e o mundo ao redor com significações.
O prazer da arte é uma celebração da humanidade em nós. O prazer de ser humano.
E o que isso tem a ver com a literatura e o sonho irrealizável de se eliminar o narrador?
Formalidades
Entre todas as modalidades de arte, talvez a literatura seja a menos espontânea. Ela demanda o aprendizado do código escrito, seus elementos e regras. O aprendizado dos atos - gêmeos siameses de um único corpo e duas cabeças - da leitura e da escrita.
De quem deseje mergulhar em suas ricas profundezas, a literatura espera um pouco de experiência de leitura. Quanto maior a familiaridade com o repertório cultural do grupo de pessoas a que se pertence, quanto mais obras na trajetória do leitor, mais se expande o horizonte literário.
A literatura está carregada de formalidades. Por quê? Para que serve esse código pelo qual ela toma forma?
Ora, o humano surgiu quando o organismo do primata passou por uma subversão. Os sentidos deixaram de ser puramente orgânicos, tornando-se sensoriais-significativos. Tal subversão criou novos tipos de memória, base de qualquer subjetividade humana: mesclas de sensações e significados.
Entre elas, a memória auditiva-significativa e comunicativa. O que são as palavras senão significados sonoros? Possuir esse tipo de memória permitiu a comunicação oral, sob cujo imperativo transcorreu a maior parte da história humana.
Permitiu também se formar, nos indivíduos, a expressão do pensamento. E estendeu as excursões e o poder da imaginação.
A escrita e a leitura corresponderam a um outro "pulo do gato" humano (para abusar de um antropomorfismo). Se detínhamos uma memória auditivo-significativa, por que não criar a partir dela uma nova memória, visual-significativa?
A oralidade limitava a comunicação entre pessoas às interações face a face. Criar a linguagem escrita libertou a comunicação humana dessa amarra temporal e espacial. O falar de uma pessoa se inscreve num suporte material por um código impresso.
Outra pessoa, diante do código impresso, pode ler para si mesma aquele mesmo falar. E há nesse falar para si mesmo, nessa ativação da voz interna e subjetiva, um tipo específico de prazer. Que a literatura potencializa ao trabalhar a linguagem escrita, explorando sua relação com significados, sentimentos e imaginação.
O narrador é, portanto, esse "outro" que está sempre ausente no ato da leitura. Esse ente que extraiu de si mesmo uma voz fugaz e orgânica, imobilizando-a na rigidez do material escrito. E, por esse ato, eliminando a si mesmo.
Como se quem escreve se autoimolasse, restando de si somente uma mancha no chão da linguagem escrita: o narrador.
Impossível, portanto, livrar-se dele, esse sol que em literatura brilha eternamente. A não ser, quem sabe, em sonho?
Escritor
