A Crise Oculta: Como o Negacionismo Minimiza a Ameaça Climática às Finanças

Ilustração de um jornalista trabalhando em uma máquina de escrever, usando um chapéu e cercado por sacos de dinheiro. A cena simboliza como o dinheiro tinge o jornalismo de negacionismo ao se analisar o risco financeiro de imóveis frente às mudanças climáticas.
O planeta está mudando. As geleiras polares e de montanha estão em retração. Nas últimas três décadas, os prejuízos econômicos provocados por eventos climáticos extremos duplicaram. O branqueamento, provocado pelo aquecimento do oceano, eliminou cerca de 19% da área mundial de recifes de coral. O calor extremo reduziu as populações de aves tropicais em até 38%.

A ciência alerta que, se mantida a atual trajetória, a interferência humana atingirá níveis ameaçadores aos ecossistemas e às sociedades. Mas esse alerta não se encontra nas páginas dos jornais. Pelo contrário, o que se encontra é uma forma de negacionismo que minimiza as consequências das mudanças em curso.

Um exemplo recente saiu nas páginas do Financial Times, uma das principais referências do mercado financeiro. Intitulada "Como começa a próxima crise financeira", a matéria do jornal abordou a possibilidade de choques climáticos elevarem custos e limitarem a oferta de seguros, dificultando financiamentos.

Sem cobertura, o risco de perdas recairia sobre proprietários e financiadores, desvalorizando os imóveis e podendo levar à próxima grande crise financeira global.

A Falácia do Jornal Britânico

Para fundamentar essa perspectiva, o jornal lista uma série de casos anedóticos: a fala de um chefe de banco central, de um investidor ou de um membro de conselho de administração de uma empresa. Segundo essas pessoas, diz o Financial Times, o seguro estaria se tornando mais caro e escasso em áreas propensas a desastres, enquanto bancos e seguradoras retiravam coberturas de áreas de risco.

Eis a primeira falácia do jornal britânico. Ao tratar do assunto, ele dá a entender ao leitor que os riscos se tratam de uma questão de opinião pessoal. É um retrato distorcido da indústria mundial de seguros. Tome-se somente o ano de 2024, em que se publicaram diversos relatórios ou comunicados de empresas, associações e reguladores sobre impactos e riscos das mudanças climáticas. Trata-se, sem sombra de dúvida, de tema central para o setor.

Entre as empresas e organizações que publicaram material sobre o tema, estavam a Allianz Group, Swiss Re Institute, Munich Re, Marsh McLennan, Geneva Association, Insurance Europe, EIOPA e Zurich Insurance. Em linhas gerais, o retrato atual é de que os riscos físicos (inundações, tempestades, secas, incêndios, calor extremo) estão aumentando em frequência e severidade e já elevam perdas seguradas.

Também se observa impacto operacional sobre subscrição, preços, capacidade e solvência. Mercadorias de alto risco estão sendo limitadas ou mais caras. O setor advoga a favor de ações de mitigação e adaptação, além de políticas públicas, para evitar perda ampla de cobertura e riscos sistêmicos.

O Disparate da Ciência e a Mudança Terrestre

Apresentar um tema fundamental para a indústria de seguros como uma questão de opinião era a tática necessária para que a matéria endossasse o negacionismo. "É preciso dizer," afirma o Financial Times, "que as opiniões estão longe de serem definitivas sobre se o aquecimento global causará essa ou qualquer outra forma de desordem financeira."

O negacionismo estampado nas páginas do jornal se baseou, em parte, num disparate originado da própria ciência. Devido ao desenvolvimento histórico do estudo do clima global e da troca energética entre o planeta, o sol e o espaço, gerou-se no âmbito científico uma excrescência. Existem dois conceitos de clima.

O primeiro é aquele tradicional, ligado à média das condições meteorológicas de uma determinada região geográfica. O outro conceito de clima é o sistema climático, que, na verdade, de climático não tem nada. Entre cientistas, há muitos que preferem chamá-lo pela denominação apropriada: o sistema terrestre.

As mudanças climáticas dizem respeito às consequências do aumento da quantidade de energia presente no sistema terrestre. Os oceanos, as plantas, os animais, os solos, os rios e lagos, as correntes atmosféricas e marinhas, as montanhas e seus processos erosivos - todos esses elementos e suas dinâmicas ocorrem e são influenciados pela energia disponível no sistema terrestre.

O negacionismo se alimenta do primeiro conceito de clima, restrito a fenômenos meteorológicos, para minimizar, desprezar ou mesmo mentir sobre os riscos e consequências das mudanças planetárias. Isso fica claro na matéria do jornal. O foco praticamente se limita a eventos meteorológicos.

Contudo, a mudança climática constitui, na realidade, uma mudança terrestre. Os componentes de nosso planeta estão se transformando, e essa distinção é fundamental para compreender a magnitude e a profundidade dos riscos. Não se trata apenas de "mais tempestades" ou "ondas de calor", mas de uma alteração sistêmica e profunda.

Observe-se a criosfera - o conjunto de massas de gelo em topos de montanha, nos solos do Ártico, nas calotas polares e nos mares. Elas passam por alterações drásticas, em trajetória acelerada, cuja interdependência com outros componentes traz implicações que vão muito além do aumento do nível do mar, influenciando a atmosfera, os ecossistemas, o oceano, os recursos hídricos e as sociedades.

Outro elemento em mudança é a biosfera, abrangendo a flora, a fauna e todos os ecossistemas. Há uma alteração na fenologia - o ciclo de vida de plantas e animais -, como, por exemplo, florescimentos precoces ou antecipações da migração de aves (o que pode desincronizar interações ecológicas vitais). A fisiologia dos organismos igualmente sofre os efeitos da presença mais abundante de energia. A distribuição geográfica das espécies está mudando, com muitas buscando climas mais amenos.

Os solos e paisagens estão sendo alterados, com o aumento de deslizamentos, alterações no solo e a aceleração da desertificação em algumas regiões. O regime de incêndios está em transformação. A frequência, intensidade e extensão dos incêndios têm crescido ao redor do planeta. Os oceanos mais quentes registram alterações em ecossistemas. A corrente oceânica do Atlântico pode entrar numa fase de menor intensidade, com severas implicações globais.

Eis alguns exemplos das mudanças terrestres, que fazem cientistas emitirem alertas cada vez mais contundentes sobre os perigos ao nosso bem-estar. Para o negacionismo do Financial Times, no entanto, isso tudo se resume a opiniões pessoais. E, claro, tratam-se de mudanças que nada têm a ver com a ordem financeira.

O Risco Subestimado e a Falácia da Certeza

Um dos tipos mais perniciosos de negacionismo se criou na economia. Modelos econômicos foram criados para avaliar os possíveis prejuízos advindos das mudanças no sistema terrestre. Com base nos resultados desses modelos, espalhou-se o negacionismo. Na matéria do jornal, ele ganha expressão por um funcionário do Federal Reserve dos EUA: "as alterações climáticas são reais," diz o funcionário, "mas não acredito que representem um risco grave."

Considere-se, no entanto, a crítica realizada a tais modelos econômicos. Um bom resumo se encontra nas análises do professor Robert Pindyck, do MIT. Um de seus estudos afirma que os modelos econômicos "têm falhas cruciais que os tornam quase inúteis." Outra referência da crítica se encontra em Steve Keen, professor da University College London, segundo o qual os economistas, ignorando a ciência, fizeram suas próprias projeções de danos em modelos a partir de métodos espúrios.

Nesse ponto, parte do problema está, de novo, na ciência. Apesar da produção de uma enorme literatura de projeções de aquecimento e de mudanças planetárias, não existe nenhuma ferramenta, nem sequer um método, para projetar riscos físicos concretos. O sistema terrestre é complexo demais para se ter essa certeza. Ninguém e nenhum modelo projetou o violento fogo que engoliu uma cidade no Canadá, outra no Havaí, ou um subúrbio na Califórnia. Nenhuma projeção previu as superenchentes na Líbia, na Espanha ou no Rio Grande do Sul. Tampouco que uma geleira em retração, nos Alpes suíços, provocaria um enorme deslizamento de gelo e terra, engolindo praticamente uma vila inteira.

A ciência, nesse sentido, falhou em expor com clareza suas próprias limitações ao tratar de projeções do futuro, no processo subestimando os riscos físicos que estão ocorrendo no planeta em mudança. Essa falha é explorada pelos economistas com seus modelos do tipo la garantia soy yo, que ignoram a Incerteza Profunda (Deep Uncertainty) e a possibilidade de Cisnes Negros Climáticos.

Em contraponto à visão negacionista dos economistas, o jornal britânico cita o professor Ben Keys, da Wharton School. A matéria dá a entender que o professor considera uma crise financeira possível, porque não se trata de impactos temporários, mas permanentes.

O trabalho do professor Keys, autoridade no campo da economia imobiliária, vai muito além disso. Ao contrário do que propõe o jornal - de que se trata de uma questão de opinião -, seus estudos demonstram que propriedades em áreas de alto risco de inundação ou incêndio florestal já estão sendo negociadas com descontos. Mostram uma "gentrificação climática", quando pessoas mais ricas se mudam para áreas de menor risco, elevando preços e potencialmente deslocando populações de baixa renda. E sugerem risco crescente para os credores hipotecários, já que prêmios em alta e cobertura escassa podem dificultar a manutenção do seguro de propriedade pelos mutuários, expondo os bancos à inadimplência e à desvalorização de garantias.

Finalmente, os estudos do professor Keys sugerem que hipotecas em áreas de alto risco climático podem se tornar "subprime climáticas", afetando a qualidade dos títulos lastreados em hipotecas. Recomenda-se maior transparência e divulgação dos riscos climáticos, bem como políticas que incentivem a adaptação e a realocação planejada.

Pisando em Gelo Fino

Talvez a principal desonestidade com o leitor da matéria do Financial Times esteja no que ela omitiu. Um dos riscos físicos mais impactantes às propriedades é o aumento do nível médio do mar. O último relatório do IPCC indicava que, em 2050, os eventos extremos de enchentes costeiras ficarão de 20 a 30 vezes mais comuns, expondo cerca de um bilhão de pessoas em todo o mundo a esse risco.

O aumento do nível do mar traz consigo outros problemas, além de enchentes. Implica em alterações na erosão costeira e na intrusão de água salgada território adentro. Centenas de estudos apontam o risco para infraestrutura, propriedades e populações costeiras. Considera-se que o mercado imobiliário global será significativamente afetado, e que os riscos têm sido substancialmente subestimados.

No entanto, o ponto central desse tema não diz respeito somente a impactos físicos, mas à percepção e preocupação públicas com as mudanças no sistema terrestre, em particular as consequências do aumento do nível do mar e enchentes associadas. Nesse fator reside a estabilidade das transações imobiliárias em regiões costeiras vulneráveis - e estudos já identificam efeitos deletérios no valor das propriedades em função disso.

Ressalte-se que as projeções da retração das calotas polares possuem grandes incertezas. E o tempo importa muito. Em curto prazo - até 2100 -, as projeções sugerem um aumento do nível médio do mar entre 0,50 e por volta de 2 metros em comparação com o nível em 1900. Em longo prazo - até 2300 -, o aumento pode chegar a mais de 15 metros.

As incertezas das projeções estão ligadas a dois fatores. O primeiro diz respeito à quantidade de energia acumulada pelo sistema terrestre. Quanto mais energia, maior a retração esperada para as calotas polares, mas isso dependerá, em parte, das emissões de gases de efeito estufa ao longo do presente século.

O segundo trata das lacunas no conhecimento científico. Visitar os relatórios do IPCC, desde o primeiro até o atual, proporciona um bom panorama desse problema.

No primeiro relatório, de 1990, verificava-se um vazio de dados e informações a respeito das calotas polares da Groenlândia e da Antártica. A suposição era de que seriam estáveis frente ao acúmulo de energia no planeta.

Os relatórios seguintes reconheceram a magnitude das calotas polares, indicando que mesmo pequenas frações de perda de massa - de derretimento - poderiam ser importantes. Ainda assim, as estimativas para 2100 do quarto relatório do IPCC, nos piores cenários, indicavam um máximo de aumento do nível do mar por volta de 0,6 metros.

Em 2015, as evidências mostravam um crescimento do nível médio do mar e retração das calotas polares, em especial na Groenlândia. A ficha começou a cair para a ciência, que, no quinto relatório do IPCC, acendeu a luz amarela. Começava-se a discutir a possibilidade de colapso de setores da Antártica. O aumento máximo projetado do nível do mar, em relação a 1900, era de aproximadamente 1 metro até 2100.

Chegamos, então, no sexto e mais recente relatório do IPCC. Os dados apresentavam uma perda acelerada de massa na Groenlândia e em setores da Antártica, e aumento crescente do nível do mar. Estudos sugeriam a continuidade da retração das calotas polares por séculos, com potencial de elevação do nível médio do mar em vários metros. E também maior complexidade dinâmica, com riscos severos de desestabilização, em curto prazo, de setores das calotas nos piores cenários.

As projeções do aumento do nível do mar para 2100 mostraram maior divergência entre os modelos climáticos, alcançando, nos piores cenários, por volta de 1,6 metros. O sexto relatório do IPCC incluía projeções para os próximos dois mil anos, cujo aumento, a depender do cenário, variava entre 2 e 16 metros.

O impacto físico severo se tornou, portanto, uma questão de tempo. Se ocorrerá até 2100 - na geração de filhos e netos - ou após - na geração de netos, bisnetos, etc.

Atente-se a exemplos de impactos do aumento do nível do mar em 1 metro. Projeta-se que em grande parte da costa sul da Flórida, nos EUA, dezenas a centenas de milhares de imóveis e infraestruturas essenciais ficariam expostos. Parte da população desses locais sofreria fortes pressões de reassentamento.

Xangai, na China, veria áreas densamente povoadas e economicamente vitais sob o risco de inundações frequentes. Bairros inteiros poderiam ser comprometidos, além do transporte urbano e do funcionamento de portos.

A ciência, portanto, na corrida contra as mudanças planetárias e seus impactos físicos, está sempre defasada. Ela, no entanto, vem ressaltando com cada vez mais veemência a severidade e gravidade dos riscos, inclusive para as propriedades.

Ouvidos atentos já perceberam esse risco e começam a incorporá-lo na sua relação com o mercado imobiliário. Falta, no entanto, essa percepção se espalhar para o restante da população. O que irá acontecer, independente do negacionismo, mais cedo ou mais tarde, gerando um tsunami de desvalorização imobiliária em regiões costeiras ao redor do globo. É somente uma questão de tempo.




Por Lino Breger
Agitador Cultural