A história literária tradicional define o modernismo como um movimento artístico e cultural surgido na Europa, entre o final do século XIX e início do XX. Abrangia um conjunto heterogêneo de iniciativas e vanguardas artísticas, propondo rupturas com a tradição e a criação de novas linguagens estéticas.
Esse enquadramento teórico foi transposto para o Brasil. Em especial a partir da década de 1940, a Semana de Arte Moderna de 1922, realizada em São Paulo, ganhou reconhecimento como evento a partir do qual se expandiu o horizonte de criação da arte modernista no país.
A Semana reuniu artistas de São Paulo, com participação de alguns do Rio de Janeiro. Para grande parte deles, representava uma alteração de perspectiva. Se antes ligados a tradições literárias tradicionais - como parnasianismo ou simbolismo -, passaram a adotar a última novidade.
Ao mesmo tempo, davam continuidade ao impulso criado no século anterior, desde o Romantismo e a independência do país: a busca de uma identidade brasileira. Acrescentariam, a esse impulso, os sopros de liberdade da criação artística que vinham da Europa.
Os modernistas brasileiros da primeira hora, portanto, criticaram a arte até então em voga no país - inclusive entre eles - por copiar modelos europeus. Propunham uma virada de mesa estética a partir de iniciativas europeias. Mas que essa virada fosse, dessa vez, menos europeia, mais brasileira.
Era uma proposta contraditória. Ainda sob a sombra da liderança e superioridade europeia, pretendiam criar algo tanto novo quanto brasileiro. Não havia, contudo, nada de muito revolucionário nessa proposta. O impulso de modernização, preservando as velhas bases coloniais, já estava em curso há tempos no país. E essa modernidade, dividida entre o velho e o novo, possuía um elemento motor: o café.
Urbes que se Atualizam
Depois da independência, o país de D. Pedro I estava quebrado. Permanecia ainda em estado muito semelhante àquele de quando se subordinava a Portugal. A exportação de matérias-primas agrícolas andava às mínguas. As províncias continuavam isoladas umas das outras, com parcos meios de transporte e de comunicação.
O panorama começou a mudar após o café se espalhar pelo Sudeste. Na segunda metade do século XIX, expandiu-se o ciclo econômico do cultivo, gerando caixa para que o Império investisse na conexão das províncias por meio da estrada de ferro - emblema de modernidade e desenvolvimento.
Quase dez mil quilômetros de ferrovias foram construídos. Estavam distribuídos, no entanto, de forma bastante desigual, concentrando-se nas principais províncias produtoras de café: Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. O isolamento ainda perdurava no restante do país. Tal característica faria da integração nacional um dos motes centrais da gestão pública desde o Império.
Junto ao trem, o telégrafo consistia noutro elemento de encurtamento das distâncias, concorrendo para a modernização. Sua implementação foi impulsionada pela Guerra do Paraguai, quando linhas se estenderam da capital, Rio de Janeiro, até o sul do país. Ele depois foi levado até o norte, além de acompanhar a construção de ferrovias.
A força econômica do café também produziu ondas de adensamento e modernização de centros urbanos no Sudeste. O primeiro e mais intenso deles foi a transformação de São Paulo numa metrópole nacional. Atraindo imigrantes e dinheiro, fomentou-se ali a instalação de uma pequena indústria de bens de consumo.
Em Minas Gerais, logo após a Proclamação da República, gerou-se uma segunda onda. Insatisfeitas com Ouro Preto, as elites agrárias da província assumiram o empreendimento de erguer uma nova capital. Projetada pelo engenheiro Aarão Reis, segundo princípios de ordem, higiene e modernidade, inaugurou-se a nova capital. Sua malha geométrica, de ruas cortadas por avenidas em diagonal, com praças e parques, traduzia uma racionalidade urbanística.
A terceira onda, também após a Proclamação da República, agitou a capital federal. Contraindo um enorme empréstimo junto à Inglaterra, o governo brasileiro, sob a liderança do prefeito e engenheiro Francisco Pereira Passos, entregou-se ao projeto de reformular o Rio de Janeiro, no modelo da moderna arquitetura e urbanismo franceses.
Transformada num canteiro de obras, a cidade testemunhou a construção de avenidas, a derrubada de imóveis, a reestruturação de bairros, canalizações e outras intervenções sanitárias.
A base econômica agrária, do cultivo do café e outras matérias-primas, ainda se apresentava com quase todas suas características coloniais intactas. Parte da riqueza que produziu, no entanto, converteu-se em centros urbanos que tentavam espelhar o estrangeiro.
Não foi por acaso que, em todos esses processos de urbanização - de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo -, uma parcela da população sequer chegou a ser considerada. Elas não foram incluídas no projeto urbanístico, tampouco nas reformas implementadas.
A modernização, no Brasil, direcionava-se a um público específico. Os descendentes dos colonos, cujo espírito ambicionava a civilidade europeia. Mas que, conforme defendiam os modernistas da literatura, devia se pintar com cores brasileiras.
A Longa História do Moderno
A mudança estética capitaneada pelo modernismo europeu se deu no interior de outro processo de modernismo: a consolidação do capitalismo industrial e financeiro. Entre o final do século XIX e o início do século XX, quando eclodiu o modernismo estético, a modernização capitalista ocorria em sociedades orientadas por um forte conservadorismo.
Leis restringiam direitos e a participação política. A tradição e as instituições reuniam grande autoridade, em especial porque se valorizava uma estrutura social hierárquica, com o mínimo de mobilidade. As cidades abrigavam uma grande desigualdade, concentrando donos do capital, um estrato médio e a massa de trabalhadores.
O dinamismo da indústria se viabilizava pelo auxílio de uma ciência mecanicista e positivista. Tecnologias incrementavam a automação e a produtividade. Meios de transporte e de comunicação encurtavam, cada vez mais, as distâncias. Enfatizava-se o nacionalismo como elemento aglutinador da população. As nações europeias disputavam colônias e áreas de influência - disputa que culminaria na Primeira Grande Guerra.
O estágio de desenvolvimento capitalista no interior do qual irrompeu o movimento estético modernista, contudo, não foi obra de algumas décadas. Antes, exigiu que a Europa percorresse séculos de transformações sociais, nos modos de produção e comércio. Foi um projeto expansionista, que se difundiu em escala global, para sempre transformando a trajetória de todos os povos e sociedades humanas.
Pode-se traçar as raízes desse projeto europeu aos séculos XV e XVI, quando se empreenderam as navegações europeias para além do Mediterrâneo. Impulsionadas pela indústria naval e da guerra, e por formas cada vez mais sofisticadas de comércio, as nações europeias buscaram capturar o estrangeiro em busca de excedentes.
Depararam-se com um mundo hiper-diverso em termos culturais e econômicos. O século XV abrigava uma pluralidade de sociedades humanas. A começar pela própria Europa, ocupada por centenas de pequenos a grandes reinados, por principados e ducados, por cidades-estados e repúblicas.
Pela Ásia se distribuíam reinados, sultanatos e alguns impérios. A África também continha impérios, reinados, sultanatos e cidades-estado. Enquanto que, nas Américas, além de três grandes impérios, havia centenas de outras culturas e grupos.
Tamanha diversidade se encontrava em vias de ser exterminada. Povos e suas diferentes histórias seriam apagados pela invenção de uma única História, na qual se privilegiava o europeu.
O Monstro Por Trás da Máscara
No projeto europeu, os excedentes do comércio se baseavam na colonialidade: a expropriação de povos e o domínio de seus territórios. A partir daí, ergueu-se lentamente a máscara da civilidade na Europa, enquanto o restante do planeta lidava com sua monstruosidade.
A modernização europeia se realizou pela imposição do regime de poder colonial, que se legitimava a partir de um conjunto de elementos. A começar pela construção de uma hierarquia histórica e racial, que classificava os povos segundo uma escala progressiva entre selvagens, bárbaros e civilizados, sendo estes exclusivamente europeus.
À medida que as formas sociais e econômicas da Europa se consolidavam, a partir da coerção e da expropriação de outros povos, essa disproporção de poder fomentou a construção de um sistema discursivo e teórico legitimador. Dessa forma, a superioridade do europeu passou a ser algo imanente à sua raça, identificada com o domínio da razão, e com seus sistemas de governo e a ciência.
A história do mundo foi concebida para se adequar ao poder europeu. As grandes civilizações do passado se resumiram à Grécia e à Roma, subestimando as imprescindíveis civilizações africanas, árabes e asiáticas. Inventou-se a pré-história, produzindo narrativas de que a Europa consistia no pináculo de toda a humanidade, seu estágio mais avançado de evolução.
Àqueles classificados de selvagens, como nativos das Américas, da África ou da Oceania, negou-se a possibilidade de cultura, de saberes e de história. Bravos europeus se aventuraram em explicações para o seu atraso, constatando, através do edifício "científico" da eugenia, tratar-se de uma deficiência das raças não-europeias.
Do ponto de vista biológico, claro está, os seres humanos não se separam em raças. Mas esse conceito, criado pelo charlatanismo científico da eugenia, distinguiria os europeus com a chancela da modernidade civilizacional. Os outros povos, bárbaros ou selvagens, encontravam-se num estado mais próximo da natureza - ou a etapas anteriores de evolução.
Dependeriam, portanto, da intervenção europeia para os salvar de si mesmos, e os incluir, em seu devido lugar de subalternidade, no quadro da modernidade. Selvagens correspondiam, em grande medida, também a bestializados, mais próximos a animais do que a humanos, seres praticamente sem cultura. Justificava-se, assim, contra eles, qualquer violência.
Iguais na Crueldade
Entre os séculos XV e XVIII, pouco a Europa se distinguia dos demais povos do planeta quanto ao uso da violência. Como em outros contextos culturais, a violência cumpria a função de manter a coesão de uma estrutura social hierarquizada, em geral aplicada pela classe dominante contra o restante da sociedade.
A tortura era procedimento corriqueiro em julgamentos criminais na Europa, muitas vezes institucionalizada por códigos ou práticas forenses. Considerava-se que a dor trazia à tona a "verdade," e a confissão sob tortura substituía a necessidade de provas materiais.
A religião estava unida ao poder soberano, funcionando para reforçar a ordem social ou o papel executado pelos indivíduos. Para tanto, existiam mecanismos de controle, entre os quais os tribunais eclesiásticos, a caça às bruxas, as expulsões forçadas ou os decretos de conversão. Quem fosse considerado transgressor enfrentaria a tortura, o exílio, a expropriação legal de bens, a execução.
Vários outros crimes ou delitos resultavam em castigo ou morte. Mantinha-se o espetáculo das punições públicas, variando de humilhações como punição em pelourinhos, de mutilações e amputações, até se queimar alguém vivo numa fogueira. Tais rituais de expiação pública tornavam visível o preço da desobediência a quem desafiava o poder instituído.
Mas a morte vinha também através de massacres, pela violência do Estado ou por limpeza política e religiosa. Às vezes contra grupos minoritários, às vezes contra dissidentes. Incessante, no continente europeu, entre os séculos XV e XVIII, a violência associada a guerras, rebeliões, levantes e motins urbanos.
Se os detentores do poder na Europa aplicavam a violência internamente, contra outros europeus, nos territórios estrangeiros eles elevariam o exercício da violência a patamares bem mais brutais. Vestindo a máscara da civilização e da superioridade da raça, sua expansão aos demais continentes gerou colapsos demográficos e populacionais.
Dezenas de milhões de pessoas ao redor do planeta morreram no enfrentamento com os europeus. Foi um extermínio físico e cultural. Eliminavam-se os corpos, mas igualmente os saberes, as filosofias, as religiões. Foi o caso do genocídio da população originária do Brasil, onde se estima havia entre 600 e mil línguas sendo faladas.
A chegada dos colonizadores em terras tupiniquins inaugurou séculos de violência e conflito com os povos originários. Os primeiros colonos e seus descendentes mataram e escravizaram homens, mulheres e crianças. As expedições bandeirantes, por exemplo, iniciadas no século XVII, reduziram a população indígena da costa brasileira em 99%. Na região central do país, a queda foi de 83%.
A Busca Pela Identidade Brasileira
Aqui jaz a sinuca de bico dos modernistas brasileiros de primeira hora. Uma sinuca de bico dupla. De um lado, a fonte em que bebiam estava contaminada. Se, na Europa, o movimento estético do modernismo contestava tradições, ele se fazia como expressão artística de sociedades industriais e capitalistas.
Surgia como afirmação de superioridade das nações "ocidentais" europeias, mergulhado em eugenia. É fácil identificá-la no futurismo, que transitou rapidamente para a direção do fascismo - com seus ideais de superioridade, nacionalismo e de submissão violenta do estrangeiro não-europeu.
Mas o viés se infiltrava em outras vertentes. Para escapar das regras conservadoras do ensino clássico tradicional, manifestações como o cubismo se apropriaram de elementos da arte de não-europeus. Ainda que admirada, era considerada uma arte inferior, não desenvolvida, um exotismo cultural. Outras vanguardas exploraram ideias de estranheza e irracionalidade, que associavam à arte primitiva.
O outro problema dos modernistas brasileiros dizia respeito à sua busca pela identidade brasileira. Mas o que era, afinal de contas, o brasileiro ou a brasilidade? Seria impossível responder a essa pergunta sem confrontar nossa história de genocídio e escravidão. Mais do que isso: a identidade brasileira permaneceria sem resolução, aprisionada, em conflito, se não se abolisse a colonialidade.
Homens de seu tempo e de sua classe social, os modernistas brasileiros não tinham a capacidade de realizar a crítica de si mesmos, da Europa, do Brasil. Fazer essa crítica, aliás, representaria um choque frontal com a base material da colonialidade brasileira, o café (ou a produção de matérias-primas), e sua elite eurocêntrica, patrocinadores da Semana de Arte Moderna. O elitismo estético e a falta de crítica social eram inevitáveis.
Reproduziam, portanto, o sistema de valores e conhecimentos importado do estrangeiro. Alguns deles abraçariam o que de pior resultaria desse sistema, os nacionalismos eugenistas do período antecedente à Segunda Grande Guerra. Outros adaptariam esse sistema às cores dos trópicos, encampando a parte de seu repertório menos espinhosa.
Com uma dimensão performativa, a Semana de Arte Moderna circulou num espaço social estratificado. Seu principal feito foi ter posto a girar, no país, a roda do experimentalismo estético. E ter apontado um caminho, ainda que limitado pelos grilhões da colonialidade, tanto para a formulação quanto para a compreensão de uma identidade brasileira.
Compreensão que, não por acaso, fracassaria. Em carta de 1930, em resposta a Augusto Frederico Schmidt, Mário de Andrade afirmou: "deixe que eu lhe diga com toda a franqueza que depois de trabalho intenso, gastos enormes, viagens penosas e um amor que não para nunca e jamais descamba pro diletantismo, eu estou cada vez menos sabendo o que é o Brasil."
Por Ana Clara Melo
Crítica Literária
