A gênese da obra: rascunho, reescrita e práticas de escrita

Imagem quadrada em preto e branco mostrando uma caneta-tinteiro inclinada no topo, da qual escorre uma cascata de letras minúsculas em estilo de máquina de datilografar. As letras caem em fluxo contínuo e se organizam em linhas tipográficas na parte inferior da página, como se estivessem sendo impressas mecanicamente sobre um papel branco com textura sutil.
A gênese de uma obra possui um início humilde. Ela se dá por meio de um rascunho, um manuscrito - este último costumava referir-se às páginas físicas onde se escrevia à mão o esboço da obra, mas o uso consolidou a equivalência entre os dois termos.

Apesar de humilde, o rascunho provoca, em quem se propõe a escrever, reações que variam do controlado conforto a traumáticos calafrios. O objetivo é transformar uma ideia em narrativa tangível. Raramente se produz um artefato polido e eloquente que os leitores consumirão.

Eis a etapa original e inevitável da escrita, compreendida como um processo cognitivo dirigido por um propósito. Envolve um ajuste dinâmico e constante, conforme se descobrem obstáculos e opções textuais. Uma distinção conceitual útil separa a escrita entre aquela cujo foco é contar algo que se sabe daquela que transforma e reorganiza o conhecimento.

Para a construção do rascunho, o processo dinâmico da escrita se concentra em contar. O principal aspecto diz respeito ao modo de fazer: se num fluxo espontâneo e produtivo, sem se importar com erros, ou num fluxo contido, realizado simultaneamente com a correção do texto. 

No interior dessa escala ocorre uma diversidade de modos de fazer, revelando um ponto comum na escrita: nenhuma fórmula se aplica. O que funciona para uma pessoa pode atrapalhar outra durante a missão de tirar a história da cabeça.

Alguém pode elaborar um rascunho que se compararia a uma criança em overdose de açúcar ou a um caos de liquidificador. Muitos tratam o primeiro rascunho menos como uma peça de prosa e mais como um projeto. Em vez de um texto corrido, misturam uma série de notas, cópias de material, pedaços de diálogo, entre outros. São inúmeras as possibilidades.

Entre a Limpeza e o Caos

Se a principal divergência reside entre fazer um rascunho limpo ou um rascunho caótico, os adeptos da limpeza correspondem àqueles que editam o texto à medida que escrevem. O progresso acontece de bloco em bloco, revisando cada um em busca de um mínimo de coerência.

A arrumação do rascunho pode fornecer uma boa estrutura, gerando um produto mais legível. Serve como uma estimativa - porque, tão cedo no processo de escrita, o texto ainda sofrerá muitas prováveis correções - da história que se pretende narrar. Os mais experientes talvez até sejam capazes de criar um texto quase sem bagunça.

Essa abordagem meticulosa possui duas desvantagens. Primeiro, ela diminui a velocidade da escrita, pois obriga a repetidas interrupções para checar o que se escreveu. A depender do grau de perfeccionismo individual, leva a comprometedores bloqueios.

Outra desvantagem é o trabalho adicional acrescentado nessa etapa inaugural. Corre-se o risco de dedicar esforço a polir trechos - mesmo capítulos interiores - que, mais tarde, em etapas de amadurecimento, serão drasticamente cortados. Um desperdício de tempo.

Quem privilegia o fluxo em detrimento da correção tende a tratar a escrita como uma tubulação furada, jorrando água pelo asfalto. Consideram o rascunho um local de despejo de ideias e dados, um estágio para encontrar o enredo da história e testar se ele funciona. Deve-se encarar a bagunça como ferramenta de progresso da escrita.

Permita-se, quem se envereda por esse caminho, que sua gramática seja um temor, que as descrições sejam falíveis e que as frases fiquem desconjuntadas. Nesse rascunho, vastas extensões da história podem ser encapsuladas em pílulas, a se desenvolverem ou não em etapa posterior. Em casos extremos, recorre-se até mesmo a elipses, acompanhadas da nota: “resolva depois.”

Mantenha a atenção fixa na meta de passar, de cabo a rabo, a história para o papel. Por isso, coloca-se tudo para fora - diretrizes, trechos da história, diálogos - com liberdade e sem muito julgamento. Os melhores praticantes raramente ficam presos no meio do percurso. Ninguém edita uma página vazia; por isso a preenchem diligentemente. Mas deixam trabalho bem mais árduo para etapas posteriores.

Esboçar ou não esboçar?


A escolha entre os dois modos de rascunhar também está ligada à presença ou não de um esboço da história. Questões como personagens, ambiente e eventos podem estar definidas no esboço. Isso facilita dar ao primeiro rascunho uma estrutura mais sólida, porque os principais elementos da história foram estabelecidos cedo.

Partir para o rascunho sem um esboço claro torna a escrita um processo de descoberta. As questões da história serão formuladas à medida que se escreve, num processo de desbravamento de possibilidades. Pouco importa se ocorre de maneira caótica ou imperfeita: a escrita abrirá rotas à medida que a história se consolida. Um rascunho bagunçado também pode proporcionar uma estrutura consistente.

Atente-se, no entanto, que os efeitos do esboço apontam em ambas as direções. Há quem elabore um esboço bastante detalhado e, ainda assim, parta para um rascunho de fluxo livre; ou quem precise dispensar o planejamento anterior para fazer um rascunho coerente, exigindo menos reformulações.

Em qualquer caso, não se atenha a um método. O cerne dessa etapa inicial da escrita depende da permissão para ser ruim, para ser incoerente e para priorizar o impulso sobre a elegância. Escolha o modo que funcione melhor, evitando comparações com outras pessoas ou julgamentos sobre certo ou errado.

O sucesso terá sido alcançado se, ao final, a história ganhar realidade na forma de um manuscrito. Cumpriu-se a primeira etapa, permitindo que a próxima se inicie: transformar o texto em obra pela reescrita.

O Trabalho Real

Sendo o primeiro rascunho legível ou praticamente ilegível, o ofício da escrita começa depois que ele for concluído. Trata-se de forjar um texto final a partir do primeiro rascunho, num trabalho de desenvolvimento que pode ser longo e exaustivo.

Estudos sugerem que a prática da escrita é recursiva, um ciclo de criação, pausa-reflexão e reescrita, por meio do qual o texto se desenvolve. O foco muda para a transformação e reorganização da história. formam ciclos que se repetem e se refinam ao longo do desenvolvimento do texto.

Bem além de correções locais de pontuação e gramática, consiste em revisão global. Corrija-se furos no enredo, emende-se partes, apague-se outras, escreva-se um capítulo adicional, ajuste-se o tempo verbal ou a perspectiva: durante a reescrita, aplicam-se todas as ferramentas disponíveis na construção do rascunho subsequente. Grande parte do “trabalho real” acontece nessa etapa.

O ciclo prossegue em refinamento crescente. Estudos recomendam que suas fases se desdobrem separadamente, intercaladas por pausas. Guarde-se um tempo de descanso entre cada reelaboração, buscando distanciamento do texto para se ganhar uma visão "externa" crítica.

Por pior que tenha sido o primeiro rascunho, será a partir dele que a história irá brotar - como uma planta no solo fértil de esterco. 




Por CF Scuo
Escritor