O Mito do Gênio Literário: Por Que a Escrita é Técnica e Diálogo, Não Magia

O período literário do Romantismo promoveu uma ideia que causa males até os dias de hoje. Um mal que aflige - ou assombra, feito um fantasma - tanto parte da crítica quanto aqueles que escrevem, prejudicando a qualidade do que produzem.

Trata-se do gênio literário, ideia que escapou da lâmpada mágica, como na história de Aladim, pela mão dos românticos. Desde então, solto pelo mundo, esse ser sobrenatural e abstrato vem realizando traquinagens na literatura.

Alguns caem vítimas da fantasia de um oco individualismo criativo como fator primordial da criação. Com isso, padecem análises críticas e textos de literatura. Para entendê-lo, devemos primeiro dar uma volta no passado.

A arte da tradição

Uma característica comum à maior parte da história humana é que ela se baseou na oralidade. Ler e escrever não consistiam em atividades essenciais à vida das pessoas. Histórias dependiam da memória e eram repassadas verbalmente.

A transmissão do conhecimento se dava através da atividade prática. Não havia um sistema escolar de ensino. O domínio da leitura e escrita limitava-se a um grupo muito reduzido - em geral de homens - da elite e da igreja, ligados ao exercício e controle do poder.

A literatura ainda precisava ser inventada. Na Idade Média europeia, literatos eram aqueles que possuíam o conhecimento da leitura e da escrita. O processo de produção do livro, completamente manual - inclusive a cópia -, demorava e demandava grandes recursos.

Também a leitura constituía uma atividade diferente: lia-se em voz alta. Aqueles raros indivíduos que sabiam ler, na presença de outras pessoas, liam em voz alta para que todos acompanhassem o que dizia o livro. Era considerado rude se não o fizessem.

Sociedades de rígida hierarquia enfatizavam normas e padrões de comportamento coletivo. A arte existia ligada aos grupos da elite, controladores do poder econômico e social, sendo exercida usualmente por meio do mecenato - pelo patrocínio de reis, da igreja e de aristocratas.

O fazer artístico refletia a hierarquia e a normatização. Acontecia através de guildas de artesãos, em uma estrutura formal de longo aprendizado. A arte se orientava no aprimoramento de modelos e escolas estabelecidas, baseadas em obras clássicas do passado, seguindo diretrizes eclesiásticas e da nobreza.

Em vez de originalidade, buscava-se aprimorar e contribuir com a arte transmitida pela tradição. Quem criava era membro de uma associação e sua ação individual ganhava existência a partir da execução com excelência de uma herança artística comum, aplicando práticas e técnicas coletivas oriundas de seu tempo e local.

Os Burgueses e a Prensa

Mas o mundo da aristocracia estava com os dias contados. Novas formas de subsistir através do trabalho emergiram a partir do século XV, com o comércio e a manufatura nascente. Surgiu um novo tipo de sujeito, o burguês, cuja ascensão representaria a derrubada da estrutura social anterior.

Fez parte dessa transformação a invenção da prensa de Gutenberg. Com ela, a impressão de livros se automatizou, facilitando e barateando sua produção, além de gerar um fenomenal ganho de escala. As obras escritas ficaram bem mais acessíveis.

A organização da manufatura e do comércio exigia uma formação dos indivíduos que incluísse a leitura e a escrita. Na transformação do mundo aristocrático em mundo burguês, a alfabetização passou gradualmente a abranger parcelas cada vez maiores da população.

Se antes o romance constituía uma exceção - especula-se que o primeiro tenha sido publicado no século XI no Japão -, a partir de 1605, com a publicação de Dom Quixote, surge o romance moderno. O conceito de literatura seria criado no século seguinte.

À época da aristocracia, a produção e circulação de livros se mantinha nas mãos da nobreza e do alto clero. Os escritores, financiados por patronos, compunham obras cujo conteúdo e estilo agradassem aos gostos e interesses da elite. Temas ligados à antiguidade clássica ou à religião.

A era burguesa implodiu esse circuito de produção e circulação da escrita. Um novo público se formou, agora não necessariamente composto pelos estratos da sociedade com o poder político e econômico. A produção e circulação do livro barateou-se e expandiu-se.

Estavam lançadas as bases da literatura como a conhecemos.

O Indivíduo e o Gênio

O mundo burguês inverteu as normas coletivas que orientavam as práticas da escrita e da leitura. Em sociedades cujas relações gravitavam ao redor da troca de mercadorias, a norma passou a enfatizar a individualidade: sujeitos precisavam ser livres para que a troca se efetivasse.

De uma atividade social exclusiva da elite, a escrita e a leitura se difundiram, integrando tanto a prática do trabalho de parte da sociedade quanto os seus momentos de lazer - a divisão do tempo entre trabalho e lazer é também invenção do mundo burguês.

Criou-se o mercado literário, no qual escritores e editores procuravam cativar um público mais amplo e diversificado. O mercado consistia na manufatura, circulação e venda de produtos literários - romances, novelas, contos, jornais, entre outros. O livro se converteu num tipo qualquer de produto; a leitura, em ato de consumo individual, a se realizar em silêncio.

Ironicamente, a ascensão da leitura e escrita trouxe uma mudança da linguagem utilizada nos livros. Os produtores abandonaram convenções de estilo para aproximar a linguagem àquela do público leitor - menos formal, menos convencional, mais relacionada com a oralidade. A narrativa em verso foi perdendo lugar para a narrativa em prosa.

A necessidade de comercializar a literatura alterou o posicionamento frente à tradição. Para atrair leitores, o livro deveria se apresentar como único, fora do comum. Daí o empenho de escritores em introduzir inovações literárias, em contraste com a simples repetição de modelos, como ocorria na era aristocrática.

Tais mudanças culminariam na geração da ideia do gênio literário pelos românticos do século XVIII. Avançaram com a proposta de que a obra constitui criação singular de uma subjetividade com dons literários além da média ordinária.

Atrás de toda grande obra original, haveria, portanto, um autor excepcional - um gênio capaz de estabelecer as próprias regras, métodos singulares e intenções subjetivas. Original e, portanto, único, um livro que valeria à pena ser consumido pelo público leitor.

Nem Tanto ao Céu, Nem Tanto à Terra

Transformações sociais mudaram a forma das pessoas se identificarem e se relacionarem com o mundo. Se antes normas e regras coletivas ordenavam explicitamente o modo de ser, agora elas se escamotearam por trás da figura do individualismo.

Formou-se a literatura - incluindo a atividade da escrita e da leitura de textos, com os diversos gêneros e o predomínio da narrativa em prosa. O livro se tornou produto para consumo de um público com expectativas e demandas. Criou-se a rede da literatura, um conjunto de atores e instituições: escritores, editores, distribuidores, leitores, livrarias, jornais e cadernos de cultura, entre outros.

A relação com a tradição e o cânone não permaneceu intacta. No lugar da excelência e da emulação do passado, a nova regra no campo da literatura, cujo compromisso era viabilizar a venda de seus produtos, enfatizava a busca, nesse diálogo com a tradição, pela inovação e pela originalidade.

Essas transformações foram romantizadas na ideia do gênio: a individualidade dotada de uma característica excepcional, cujo arbítrio quebrava convenções, rompia com a tradição e o passado. Um ente abstrato e ficcional.

Ainda há críticos que distorcem a história da literatura sob as lentes do gênio. Que anunciam a crise da literatura atual por ausência de grandes genialidades e seus manifestos radicais. E também aqueles que se dedicam à escrita sob a crença de que ela se faz a partir da excepcionalidade, na crença de que a ficção romântica seja realidade.

Em literatura, afirma-se que um bom escritor ou escritora é, antes de tudo, um bom leitor ou leitora. Isso porque é pela leitura que se tem contato e se ganha familiaridade com a história e o patrimônio literário de uma cultura. Sem o diálogo com a história e o patrimônio literário, é muito raro se criar uma boa obra.

Além disso, um livro que entra para o cânone corresponde a um livro que os leitores mantêm vivo pela leitura. A ficção romântica do gênio não faz nenhuma menção a esse papel da leitura. Tampouco ao processo de incorporação de uma obra ao cânone, que inclui debates, controvérsias, incessantes inclusões e exclusões de títulos e autores.

Como em todo ofício, o da escrita exige de quem o exerce empenho, técnica e aprimoramento. Conhecimento da arte a que se dedica. Envolvimento com os atores e instituições que compõem a literatura. Gênios? Melhor deixá-los dentro da lâmpada mágica. 




Por Ana Clara Melo
Crítica Literária