A invenção do gênio - Escritor CF Scuo
Ana Clara MeloCrítica literária

A invenção do gênio

O período literário do romantismo promoveu uma ideia que causa males até os dias de hoje. Um mal que aflige - ou assombra feito um fantasma - tanto parte da crítica quanto aqueles que escrevem, prejudicando a qualidade do que produzem.

Trata-se do gênio literário, ideia que escapou da lâmpada mágica, como na história de Aladim, pela mão dos românticos. Desde então, solto pelo mundo, esse ser sobrenatural, abstrato, vem realizando traquinagens na literatura.

Alguns caem vítima da fantasia de um oco individualismo criativo enquanto fator primordial da criação. Com isso padecem análises críticas e textos de literatura. 

Para poucos


Uma característica comum à maior parte da história humana é que ela se baseou na oralidade. Ler e escrever não consistiam atividades essenciais à vida das pessoas. Histórias dependiam da memória e eram repassadas verbalmente.

A transmissão do conhecimento se dava através da atividade prática. Não havia sistema escolar de ensino. O domínio de leitura e escrita se limitava a um grupo muito reduzido - em geral de homens - da elite e da igreja, ligados ao exercício e controle do poder.

A literatura ainda precisava ser inventada. Na idade média européia, literatos eram aqueles que possuíam o conhecimento da leitura e escrita. O processo de produção do livro, completamente manual - inclusive a cópia -, demorava e demandava grandes recursos.

Também a leitura constituía uma atividade diferente: lia-se em voz alta. Aqueles raros indivíduos que sabiam ler, na presença de outras pessoas, liam em voz alta para que todos acompanhassem o que dizia o livro. Era considerado rude se não o fizessem.

Sociedades de rígida hierarquia enfatizavam normas e padrões de comportamento coletivos. A arte existia ligada aos grupos da elite, controladores do poder econômico e social, sendo exercida usualmente por meio do mecenato - pelo patrocínio de reis, da igreja e de aristocratas.

O fazer artístico refletia a hierarquia e normatização. Acontecia através de guildas de artesãos, em uma estrutura formal de longo aprendizado. A arte se orientava no aprimoramento de modelos e escolas estabelecidas, baseadas em obras clássicas do passado, segundo diretrizes eclesiásticas e da nobreza.

Em vez de originalidade, buscava-se aprimorar e contribuir com a arte transmitida pela tradição. Quem criava era membro de uma associação e sua ação individual ganhava existência a partir da execução com excelência de uma herança artística comum, aplicando práticas e técnicas coletivas oriundas de seu tempo e local.

Os burgueses e a prensa


Mas o mundo da aristocracia estava com os dias contados. Novas formas de subsistir através do trabalho emergiram a partir do século XV, com o comércio e a manufatura nascente. Surgiu um novo tipo de sujeito, o burguês, cuja ascensão representaria a derrubada da estrutura social anterior.

Fez parte dessa transformação a invenção da prensa de Gutemberg. Com ela, a impressão de livros se automatizou, facilitando e barateando sua produção, além de gerar um fenomenal ganho de escala. As obras escritas ficaram bem mais acessíveis.

A organização da manufatura e do comércio exigiam uma formação dos indivíduos que incluísse a leitura e a escrita. Na transformação do mundo aristocrático em mundo burguês, a alfabetização passou gradualmente a abranger parcelas cada vez maiores da população.

Se antes o romance constituía uma exceção - especula-se que o primeiro tenha sido publicado no século XI no Japão -, a partir de 1605, com a publicação de Dom Quixote, surge o romance moderno. O conceito de literatura seria criado no século seguinte.

À época da aristocracia, a produção e circulação de livros se mantinha nas mãos da nobreza e do alto clero. Os escritores, financiados por patronos, compunham obras cujo conteúdo e estilo agradassem aos gostos e interesses da elite. Temas ligados à antiguidade clássica ou à religião.

A era burguesa implodiu esse circuito de produção e circulação da escrita. Um novo público surgiu, agora não necessariamente dos estratos da sociedade com o poder político e econômico. A produção e circulação do livro barateou-se e expandiu-se.

Estavam lançadas as bases da literatura como a conhecemos.


O indivíduo e o gênio


As normas coletivas que orientavam as práticas da escrita e da leitura viraram de cabeça para baixo com a formação do mundo burguês. Em sociedades cujas relações gravitavam ao redor da troca de mercadorias, a norma passou a enfatizar a subjetividade: sujeitos precisavam ser livres para que a troca se efetivasse.

De uma atividade social exclusiva da elite, a escrita e a leitura se difundiram, integrando tanto a prática do trabalho de parte da sociedade quanto os seus momentos de lazer. - a divisão do tempo entre trabalho e lazer é também invenção do mundo burguês.

Criou-se o mercado literário, no qual escritores e editores procuravam cativar um público mais amplo e diversificado. O mercado consistia na manufatura, circulação e venda de produtos literários - romances, novelas, contos, jornais, entre outros. O livro se converteu em apenas mais um tipo de produto; a leitura, em ato de consumo individual, a se realizar em silêncio.

Ironicamente, a ascensão da leitura e escrita trouxe uma mudança da linguagem utilizada nos livros. Os produtores abandonaram convenções de estilo para aproximar a linguagem àquela do público leitor - menos formal, menos convencional, mais relacionada com a oralidade. A narrativa em verso foi perdendo lugar para a narrativa em prosa.

A necessidade de comercializar a literatura alterou o posicionamento frente à tradição. Para atrair leitores, o livro deveria se apresentar como único, fora do comum. Daí o empenho de escritores em introduzir inovações literárias, em contraste com a simples repetição de modelos, como ocorria na era aristocrática.

Tais mudanças culminariam na geração da ideia do gênio literário pelos românticos do século XVIII. Avançaram com a proposta de que a obra constitui criação singular de um gênio - uma subjetividade com dons literários além da média ordinária.

Atrás de toda grande obra original, haveria sempre um autor excepcional - um gênio capaz de estabelecer as próprias regras, método individuais, intenções subjetivas. Original e, portanto, único, um livro que valeria à pena ser consumidos pelo público leitor.

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra


Transformações sociais mudaram a forma das pessoas se identificarem e se relacionarem com o mundo. Se antes normas e regras coletivas ordenavam explicitamente o modo de ser, agora elas se escamotearam por trás da figura do individualismo.

Formou-se a literatura - incluindo a atividade da escrita e da leitura de textos, com os diversos gêneros e o predomínio da narrativa em prosa. O livro se tornou produto para consumo. Os leitores emergiram enquanto público com expectativas e demandas. Criou-se uma rede da literatura, com um conjunto de atores e instituições - escritores, editores, distribuidores, leitores, livrarias, jornais e cadernos de cultura, entre outros.

A relação com a tradição e o cânone não permaneceu intacta. No lugar da excelência e da emulação do passado, a nova regra no campo da literatura, cujo compromisso era viabilizar a venda de seus produtos literários, enfatizava a busca, nesse diálogo com a tradição, pela inovação e pelo originalidade.

Essas transformações foram romantizadas na ideia do gênio: a individualidade dotada de uma característica excepcional, cujo arbítrio quebrava convenções, rompia com a tradição e o passado. Um ente abstrato e ficcional.

Ainda há críticos que distorcem a história da literatura sob as lentes do gênio. Que anunciam a crise da literatura atual por ausência de grandes genialidades e seus manifestos radicais. E também aqueles que se empreendem na escrita sob a crença de que ela se faz a partir da excepcionalidade, na crença de que a ficção romântica seja realidade.

Em literatura, afirma-se que um bom escritor ou escritora é, antes de tudo, um bom leitor ou leitora. Isso porque é pela última que se tem contato e se ganha familiaridade com a história e o patrimônio literário de uma cultura. Sem o diálogo com a história e o patrimônio literário, é muito raro se criar uma boa obra.

Além disso, um livro que entra para o cânone corresponde a um livro que os leitores mantém vivo pela leitura. A ficção romântica do gênio faz nenhuma menção a esse papel da leitura. Tampouco ao processo de incorporação de uma obra ao cânone, que inclui debates, controvérsias, incessantes inclusões e exclusões de títulos e autores.

Como em todo ofício, o da escrita exige de quem o exerce empenho, técnica, aprimoramento. Conhecimento da arte a que se dedica. Envolvimento com os atores e instituições que compõem a literatura. Gênios? Melhor os deixar dentro da lâmpada mágica. 



Por Ana Clara Melo
Crítica Literária

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