É possível sintetizar a arte da escrita em algumas regras básicas? Em especial, regras para se escrever bem? Há quem diga que sim, espalhando suas fórmulas por aí, sem sequer definir o que significa a boa escrita. Ou, pior, sem alertar para o preconceito que se esconde por trás dessa expressão.
Talvez o mais importante para um escritor ou escritora seja a perseverança. Deve insistir com a literatura, que abrange tanto a escrita quanto a leitura. Provavelmente, ela ou ele estará longe de ser uma pessoa que acerta na primeira tentativa, criando sempre textos excepcionais, sucessos imediatos de público e crítica.
Muito pelo contrário. Como em qualquer outra atividade, quem escreve vai se aprimorando, aprendendo com os próprios erros. Ah, o adorável conceito de errar, do qual se produzem os frutos mais saborosos. Sim, se a proposta é levantar regras de como escrever, abracemos a "má escrita".
A arte da "má escrita" se caracteriza pela imprevisibilidade. Ainda assim, inventamos suas regras básicas, a fim de as compartilhar com o mundo.
Regra número 1. Seja viciosamente egoísta
Atravessamos uma triste página da história, em que, mergulhados na paisagem da tecnologia digital, aflorou em nós o mais extremo individualismo. Sentados no assento do transporte público, ou na cadeira do restaurante, diante de nós sustentamos as telas. Evaporou-se o senso de comunidade ou a defesa do bem-comum. Como diz o velho adágio, cada um é uma ilha de empreendedorismo.
Nesse contexto, o livro escapa fácil das mãos, os olhos atraídos pela força de gravidade das imagens de mídias sociais. A presença do outro, a capacidade de estar e entender a posição alheia, desaparecem para quem escreve. O eu-mesmo asfixia o eu-lírico. O circo eletrônico em que nos metemos nos estimula a pedir aplausos, buscando validação imediata.
Somados, os individualismos se transformam num mar de insuportável mesmice. A isso escapa o mau escritor, pois ele marcha adiante, com uma sanha inquebrantável. Seu vicioso egoísmo tanto se aprofunda, que não chega mais a caber nele quem o nutre. A criatura devora o criador, e o mau escritor deixa de reconhecer a própria escrita.
Regra número 2. Procure nada por tema
A máquina do mundo dispõe de inteligência nenhuma, apesar do artifício computacional. Ela opera segundo o estúpido princípio da degradação inconsequente da natureza. Apesar de séculos de funcionamento, seus mais recentes produtos são repaginações de abjetos plutocratas e das piores figuras políticas.
Por que é, então, que opera? A julgar por seu principal resultado, a máquina do mundo trabalha para gerar lixo e desperdício. A tal ponto que, independentemente do que propagam os consultores em futurologia, vislumbramos um indisputável destino: o de crises, com promessas de arrastar os países para o colapso, numa repetição do desmoronamento social ocorrido ao fim da autoritária União Soviética.
Não é diferente em literatura, cuja circulação de obras corresponde, em boa parte, a um grande desperdício. O livro numa estante privada se converteu em enfeite. Numa biblioteca, pode servir a muitos, mas as bibliotecas estão famintas de frequentadores e de dinheiro. Gastamos as pestanas em leituras desperdiçadas, engajamos em projetos de escrita do desperdício, num consumo de energia e recursos naturais. Quanto papel em forma de livro se joga fora diariamente!
Para a "má escrita", não importa. Ela se realiza por meio de um desejo libidinoso pelo lixo. Diante da máquina do mundo, escrever por quê? Por nada, é a única resposta possível. A "má escrita" toma o nada como tema, abraça-o, rasga-lhe as vestes, ama-o fisicamente, fecunda-o. Faz dele sua trincheira nessa terra de estupidez.
Regra número 3. Escreva feito um ignorante.
Sob o impulso do domínio, a Europa instituiu a visão de que existem leis para a natureza, que se pode decifrá-las por ferramentas matemáticas e, desse modo, controlá-la. O europeu se considerava iluminista quando, na verdade, estava sacralizando a crença pagã do cientificismo, organizada em torno de dogmas e de clérigos de jaleco numa hierarquia de autoridade. Abobrinhas, abobrinhas.
Retornemos à compreensão da antiguidade de que todo conhecimento é imperfeito. Para tanto, a "má escrita" opta por uma ignorância aguda. Implantada na ponta de sua lança, com ela ataca em textos o protetorado científico que poluiu a folha com plástico e o céu com satélites. Deve infiltrar, como água insistente, as sólidas fundações da ciência, até expor o que ela tem de comum com toda coisa ordinária: a transiência e, sobreposto ao acerto, o erro.
Regra número 4. Adote a verborragia.
Escute: nos seis continentes os sinos dobram, anunciando a era do apogeu do plágio. Modelos de computador dissecaram a linguagem em sua ossatura estatística. No interior de geométricas catedrais, engolem massas volumosas de energia e água, enquanto se adestram na cópia de obras escritas. Sob a tempestade de relampejos de seus processadores, geram um oceano de texto em segundos, indiferentes ao fato de que ao dia segue a noite e, depois dela, outro dia.
Aos poucos, afogamo-nos nessa literata indiferença, que converte o ato de escrever em inutilidade e anestesia o leitor - nada mais lê, somente vê ou assiste às telas. Não há entidade sobre a Terra dotada de poder suficiente para conter as corporações tecnológicas e suas tropas de autômatos, cuja marcha progride em beligerância. Em seu rastro, observamos, impassivos, a ruína da infância, do bem-estar e das democracias.
Por isso nós, os maus escritores e escritoras, cuspimos no rosto de quem nos solicita concisão. Não, expirou-se o tempo da contenção! A "má escrita" sabe que o silêncio e o vácuo são hoje mercadorias valorizadas pela máquina do mundo.
O nosso ruído é o protesto contra a padronização sintética da linguagem. Empunhamos a verborragia com loucura, como se, de pé num banco em praça pública, gritássemos palavras de resistência aos nossos concidadãos. O que se constituirá, pressentimos, em nosso segundo ato, pois o tecnocrático autoritarismo nos empurra a novas guerras.
Regra número 5. Tenha a espessura de uma parede.
Se mentir é fácil demais, refletir a mentira infinitamente em espelhos móveis ficou ao alcance da ponta dos dedos. Em nome dos deuses, em nome da pátria, em nome dos bons costumes se expele diariamente intolerância e ódio contra o diferente. Não vieram alienígenas, mas forças policialescas, em cujos uniformes se imprimiu uma transparente cruz gamada, abduzir as pessoas das calçadas, do interior de fábricas, em meio à colheita de legumes, e, imigrantes ou não, expeli-las.
Os sonhos, portanto, melhor comê-los na padaria. Ou reservá-los ao divã do analista. Quando as botas põem abaixo a porta de casa, alimentar a literatura de sonhos, inflá-la como um esotérico balão, de pouco vale - já não permitirão o voo.
O mar revolto se acentua de infortúnios, contra os quais a "má escrita" escolhe insurgir-se. Inspirada pelo rochedo, imperturbável diante dos vagalhões que contra ele arrebentam, deve-se assumir a espessura de uma parede na "má escrita".
Rígida. Opaca. Mas em que se pregam quadros.
Regra número 6. O escrito está morto.
O que há nas entrelinhas, a não ser espaço em branco? Ah, os apologistas anunciam a importância do não dito, do mistério que caberá ao leitor decifrar. Mas, na "má escrita", não há nada que seja dito, porque ainda não estamos de pé num banco em praça pública. Não, senhoras e senhores, nossa inteligência não permite que extravasemos o concreto, e nossa criação remanesce unicamente em forma escrita.
Atiramos com um revólver, a sangue frio, em nossa voz interior, e ela jaz defunta no plano estéril do papel. Dessa forma, para o mau escritor ou escritora, tudo é unicamente escrito. Cabe ao leitor o milagre da ressuscitação; nessa passagem, a voz deixa de ser a nossa para ser a de uma outra pessoa, feita de ossos, carne e adereços. Fornecemos a partitura. Em sua cabeça, o leitor conduz a própria orquestra, dando expressão à sinfonia.
E quantas vezes, em desconfortáveis encontros, o leitor nos informará de aspectos que, até então, ignorávamos a respeito do corpo que abandonamos sem vida numa página?
Regra número 7. Nada demais.
Desculpe, inexiste um carimbo de mau escritor ou má escritora que você possa imprimir na testa, de modo a se exibir nos corredores do supermercado. Também inexistente é a divisão entre fazer e ser: o mau escritor ou a má escritora é aquele que está constantemente escrevendo. Deixa de sê-lo, caso suspenda a atividade de escrita.
E, porque dedicado à "má escrita", tampouco com isso se importa. Se lhe perguntam o que faz da vida, responde: "sou contadora", "sou médico plantonista", "sou costureira" ou qualquer que seja a digna profissão da qual retire seu sustento. Se não tiver nenhuma, simplesmente admite: "no momento, estou desempregado".
Em paralelo ao trabalho de verdade, adiciona-se o trabalho da "má escrita". A não ser que esteja doente, com um compromisso inadiável com o parente que veio lhe fazer uma visita, ou algo semelhante, esse trabalho adicional se realiza diariamente. Às vezes com prazer. Muitas vezes, demandando um bom esforço ou algumas xícaras de café.
Ninguém fica com bloqueio na "má escrita". Talvez fique em depressão, o que, segundo o quadro clínico, pode se tornar empecilho para todo tipo de trabalho. Se cair nessa condição, procure logo ajuda médica.
De qualquer modo, na inaudita circunstância de uma alma curiosa nos flagrar em pleno ato de escrita, inquirindo o que tanto rabiscamos nas páginas pautadas de um caderno, deve-se retrucar: "nada demais. Apenas 'má escrita'."
Regra número 8. Sem reclamações.
Pior do que reclamar com uma empresa de telefonia de um erro na cobrança mensal. Pior do que reclamar do equívoco na leitura do medidor de eletricidade com uma empresa de energia. Pior do que reclamar de um débito indevido num banco. Pior do que reclamar com a seguradora de saúde da recusa em ressarcir um procedimento. No que diz respeito a reclamações, a "má escrita" é muito pior do que tudo isso.
A história humana se caracteriza pela oralidade. Dispensa-se frequentar uma escola para se aprender uma língua, suas regras e sua riqueza de vocabulário. Enquanto fenômeno de maior popularidade, a escrita surgiu recentemente, numa trajetória desde o início marcada pela ondulação do espaço que ocupa em relação à forma oral, à qual permanece submetida.
A escrita de livros constitui, portanto, quase uma exceção à regra. Por isso não reclamam as más escritoras e maus escritores. As tecnologias digitais fortaleceram a oralidade e, por consequência, a submissão da escrita. As séries, as novelas, os programas de comédia, os filmes são todos baseados numa forma de escrita voltada para a oralidade. Reconhecemos a nossa desimportância em relação ao dito nas ruas.
Regra número 9. Um absurdo.
A essência da modernidade, construída, ao longo de séculos, pela Europa, foi exposta em romances por um morador de Praga que, devido a complicações da tuberculose, morreu de fome. Era, e ainda permanece, uma surreal burocracia, um portentoso castelo erguido em minudências triviais, cujas esquinas conduzem a possibilidades absurdas. Sob a condução auspiciosa do tempo mecânico dos relógios.
Uma noite de alcoólicos excessos termina, madrugada afora, com um abraço na porcelana da privada. A "má escrita" acolhe a verve ordinária desses momentos nada aventureiros como matéria de criação.
Regra número 10. O velho se renova.
Uma boa "má escrita" envelhecerá rapidamente. Em vez de ceder à tentação - como fez o morador de Praga que desvendou a essência da modernidade antes de, devido a complicações da tuberculose, morrer de fome - e queimar seus manuscritos numa pira improvisada no jardim, lembre-se: no Universo, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
O mau escritor ou a má escritora busca, a princípio, decompor o material envelhecido, que presta somente para estrume. Cavuca-o como se cavuca o solo, acumulando sujeira debaixo das unhas. Aspira o cheiro terroso, pungente, despedaça o que for preciso para ver se brotam elementos inéditos.
Aplique-se, todavia, somente o esforço merecido. Se o manuscrito insistir, com empedernida obstinação, em se manter pobre, não se convertendo em coisa promissora, recomenda-se eliminá-lo da face da terra, sem deixar nenhum rastro.
Regra número 11. Desculpe qualquer coisa.
O praticante da "má escrita" que se preze odeia textos que tratam de como escrever. Ao se deparar com alguém sugerindo regras para a escrita, feito um possesso cidadão da Galiléia, é capaz de apedrejar o pecador até a morte.
Dessa forma, desculpe, leitor, qualquer coisa. Talvez, reconhecendo o mérito desta "má escrita", ela seja recebida com um pouco de comiseração. E, se não for, que diferença faz?
Escritor
