De Escribas ao Leitor Contemporâneo: A Escrita como Função Social e o Desaparecimento do Autor

Gravura monocromática: Representação da Morte do Autor com um escritor moderno se dissolvendo em fumaça sobre um manuscrito, enquanto um par de olhos de leitor o observa. Simboliza a escrita como função social histórica.
Quando se escreve um texto, o escritor deve se esforçar em desaparecer. Ele ou ela escreve para os outros, para os possíveis leitores e leitoras, os quais só continuarão a virar as páginas de um livro se o seu interesse for mantido.

O autor ou autora que se intromete na história ou toma as decisões no lugar de seus personagens arrisca-se a colocar um obstáculo no caminho da leitura. Essa intrusão empobrece o enredo, que se transforma em uma cadeia insossa, mecânica, de acontecimentos - um fato que leva a outro fato que causa um outro.

Que interesse haverá para o leitor ou leitora em um livro assim? Seria melhor ler as notícias do jornal - tomando-se o cuidado de escapar das armadilhas da falsidade digital - para se informar a respeito do mundo.

A Morte do Autor e o Nascimento do Leitor

A tradição literária ocidental supervalorizou a figura do autor como a única fonte de significado. A noção de individualismo consiste num dos pilares das sociedades burguesas modernas, por meio do qual ela se conserva no tempo. Mas esse viés não corresponde à prática da literatura.

Para qualquer texto, o verdadeiro agente na atribuição de sentido ao texto é o leitor. As letras e palavras impressas num suporte físico, ou estampadas numa tela, constituem um campo neutro de sentido, um elo inerte e sem vida na cadeia de elementos da literatura. Serve como um guia para que o leitor ative em si mesmo um tipo de entendimento.

Além disso, como em tudo o que realizamos, a noção de escritor ou escritora representa uma função social, estabelecida coletivamente por uma rede de instituições, de práticas, de regras, entre outros. No caso da literatura, essa rede tem o propósito de transmitir enunciações, em forma de textos, direcionadas ao usufruto estético de pessoas na função social de leitores.

Em um mundo que privilegia a escrita sobre a oralidade, onde os textos literários se formam como mercadorias com sua correspondentes formas de circulação e de consumo, o exercício de ambas as funções exige do indivíduo uma longa trajetória de aprendizado e de engajamento. Para entender melhor esse ponto, vale à pena recorrer à história.

A Escrita como Tecnologia Social e Instrumento de Poder na Antiguidade

A escrita surgiu, restrita a uma pequena elite, em culturas da antiguidade onde dominava a oralidade. Surgiu não para a autoexpressão ou a satisfação estética do indivíduo, mas como uma tecnologia social com finalidade coletiva ou estatal, focada na administração, no registro e no controle. Prestava-se ao exercício do poder político e à afirmação da autoridade eclesiástica.

Nas civilizações egípcia e mesopotâmica, o sistema da escrita/leitura estava sob o domínio da elite. Sua execucão ficava à cargo de um minúsculo estrato de profissionais especializados, os escribas. Detinham o conhecimento dos complexos sistemas de escrita (hieroglíficos ou cuneiformes), cumprindo uma funcão social de grande destaque e influência.

A função de escriba era se ligava diretamente aos interesses da classe dominante, dos reis e dos templos. Eles eram responsáveis pelo registro de dados numéricos e contábeis, necessários para impostos, colheitas e comércio, pela redação de leis e decretos e pela preservação da memória institucional em arquivos.

O escriba era um intermediário da linguagem, um operador técnico que tornava possível a comunicação e a memória da elite. Em vez de campo de expressão de uma voz individual ou um gênio criativo, criava-se o texto para ser lido (em voz alta) e aplicado por outros, dentro de uma estrutura social rígida. O texto representava um instrumento de poder que garantia a ordem, a burocracia e a perpetuação do domínio.

Da Função de Elite à Crise do Autor Moderno

A transição das culturas de oralidade para as culturas letradas foi um processo lento, que levou séculos. Envolveu a invenção da prensa de Gutenberg, a difusão do ensino escolar, a democratização do acesso às obras escritas. Efeitos se fizeram sentir sobre o ato de escrever, que se converteu numa prática social mais difundida. Nesse contexto, marcado pelo individualismo burguês, que surge a ilusória figura do "autor-gênio" romantizado.

No entanto, observa-se o mesmo princípio, desde a antiguidade: o circuito da escrita/leitura é, em sua essência, despersonalizada e coletiva. A escrita, seja na forma de inscrições cuneiformes ou de um romance moderno, sempre foi uma tecnologia de comunicação social. Se não existem mais escribas servindo a um Faraó, temos um escritor contemporâneo imbuído na linguagem e na rede de práticas sociais que o definem como tal.

Até mesmo o fato de que, na Antiguidade, as práticas da escrita e da leitura, bem como os textos produzidos, ficarem submetidos ao controle estrito da elite - como, por exemplo, sua função social e o público a que se destinam - encontra paralelo na modernidade. No presente, verifica-se uma circulação mais ampla de obras escritas, ou uma maior liberdade do leitor-sujeito na interpretação da "matéria inerte" do texto.

A rede da literatura opera, no entanto, sob a tutela de uma elite intelectual e econômica, que norteia as funções sociais da escrita e da leitura, molda instituições, ou influencia a formação de delimitações, como entre o erudito e o popular.

Agência Narrativa e Força Interna

A quem escreve, é mais benéfico guardar a vaidade para situações da vida cotidiana. Um pouco de vaidade é fundamental para cuidar de si, como a vaidade de fazer exercício diariamente, de se alimentar bem, de cuidar da própria saúde.

A ficção agradece se a vaidade criadora ficar de fora. Pode-se planejar e conceber uma história com antecedência, talvez meticulosamente, mas o enredo e os personagens é que a conduzem e a modificam: eles são a história.

Para satisfazer a leitura, para que se continue a virar a página, o enredo precisa possuir uma força interna. Deve estar dotado de um certo arrebatamento que surge da agência autêntica dos seus elementos. E isso não se transmite diretamente do autor ou autora para o papel.

A conjunção dos elementos da obra é que dará essa força interna, promovendo o arrebatamento à trama e ao enredo. É muito comum, aliás, que esses elementos vão de encontro às expectativas de quem escreve.

Escrever como Quem Lê (O Papel Ativo do Leitor)

Para dar lugar e perceber essa força, talvez valha o conselho: escreva como estivesse lendo. Seja menos o gênio criativo e mais o leitor. O escritor, ao adotar a postura do leitor, consegue se afastar da sua intenção original e preencher as lacunas textuais de forma a permitir a interação com o público. Isso contribui para se ter em mente a função social que se cumpre no ato da escrita.

O objeto literário autêntico é, de fato, a interação do texto com o leitor. Ao se apagar, o escritor não perde o controle da narrativa; ele permite que o texto se abra à natureza múltipla, ambígua e plural da linguagem. Essa abertura é o que verdadeiramente permite que a obra ganhe vida no processo de leitura.




Por CF Scuo
Escritor