O Vazio Preenchido: Crítica ao Paradigma Colonial da História Literária Brasileira

Ilustração em estilo de gravura de um cocar indígena flutuando sobre a palavra Literatura, com olhos por debaixo. Simboliza a colonialidade no estudo da literatura brasileira.
A narrativa tradicional sobre a história da literatura brasileira se dedica a entender como ela se formou. Mas o pressuposto dessa perspectiva é colonial. Segundo essa narrativa, presente em autores canônicos como Antônio Candido, Alfredo Bosi e Afrânio Coutinho, a América do Sul descansava num vazio cultural, que começou a ser preenchido pela chegada dos portugueses.

O colonialismo consistiu na justificativa para a eliminação e para a exploração de povos não-europeus. A eles se negava a possibilidade de uma história, a existência de uma civilização cultural diversa da europeia. Apagava-se a cultura e mesmo a existência do outro.

As teorias de ocupação humana da América do Sul, inicialmente geradas no estrangeiro, consideravam, por exemplo, a Amazônia um ambiente inóspito. A floresta constituiria um deserto verde, onde culturas humanas jamais poderiam florescer.

O território da Amazônia seria, portanto, um grande vazio de vegetação intocada. Mas a arqueologia das últimas décadas, com importante contribuição brasileira, mostrou o equívoco dessas teorias, baseadas antes na perspectiva colonialista do que em evidências.

Não apenas milhões de pessoas, pertencentes a povos de ricas culturas, ocuparam a Amazônia: eles a transformaram profundamente. A presença de grupos humanos na região data de cerca de 15 mil anos atrás. Em vez de intocada, entende-se que a floresta foi humanizada, incluindo, entre outros, a produção de novos tipos de solos e a alteração da composição das espécies de árvores.

Os Dois Lados da Moeda

Toda essa riqueza se extinguiu pelo colonialismo europeu, que desumanizava outros povos, rotulados de primitivos ou selvagens - mais próximos de um "estado natural" do que de uma sociedade humana. A visão evolutiva de progresso da humanidade, produzida pela Europa, situava - obviamente - o europeu como ápice civilizatório.

O supostamente civilizado europeu, ou seus representantes coloniais, praticaram a brutalidade em larga escala, na forma de expropriações, genocídio e escravidão. Em literatura, isso se traduziu no apagamento das culturas e literaturas ameríndias pré-coloniais. Aos nativos da América se negava a possibilidade de arte, de saberes, de conhecimentos.

Tome-se o caso de Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro. Contemporâneo do romantismo brasileiro, inicialmente o Visconde confessava também alimentar o mesmo ufanismo indigenista medíocre.

O romantismo se apropriava de uma visão do índio, importada da Europa, como o nobre selvagem. Percebidos pela lente do primitivismo, os indígenas correspondiam aos brasileiros originários, imaculados pelos vícios da civilização. Foram transformados, pela elite branca da literatura, em símbolo de uma tradição brasileira independente do estrangeiro. Eram bravos, corajosos.

Faltou, é claro, combinar essa visão imaginária com os indígenas. Enquanto os românticos cantavam o índio imaginário, a relação de suas sociedades colonialistas com esses povos era completamente diferente.

Os estudos de história retratam um constante estado de guerra e conflito entre brancos opressores e povos originários, que tentavam resistir à tomada de seus territórios e à destruição de seus modos de vida. O resultado tem sido - porque ainda presente - a dizimação dos não-europeus.

As ilusões poéticas do Visconde duraram pouco. Segundo seu próprio relato, durante uma viagem pelo interior de São Paulo, ele quase teve sua comitiva atacada por "canibais". Na verdade, o espírito de Varnhagen nutria, pelos nativos brasileiros, a outra visão importada da Europa: em vez de inocentes, eram eles bestiais.

Tratava-se do lado oposto da mesma moeda. O rótulo de selvagem ou primitivo aplicado aos índios, no ponto de vista endossado pelo Visconde, menosprezava esses povos de uma realidade de horrorosos costumes. Eram bárbaros não-civilizados.

Portanto, defendia o Visconde, se a catequese não fosse suficiente para os converter à civilidade, justificava-se sua domesticação pelo uso da violência. Algo que vinha se praticando desde 1500.

Em ambos os casos, mal passava pela cabeça dos brancos colonizadores que seus pés estivessem pisando terra alheia.

História Literária Tingida de Branco

A construção dos cânones literário e historiográfico do Brasil prosseguiu na mesma linha colonialista. A história da formação da literatura brasileira considerou somente o percurso do branco europeu. Não apontou nem problematizou o bárbaro aniquilamento que se executou contra outros povos da América e da África.

Abordar a "formação" da literatura no país deixa intacto o eurocentrismo e o colonialismo. Pode-se observar tal viés no trabalho de Antônio Candido, que operava sistemas de sentido importados, silenciando realizações culturais não europeias.

Candido defendia a literatura como uma forma de humanização, um direito humano fundamental, que devia ser acessível a todos. Ao mesmo tempo, propunha uma hierarquia valorizativa da cultura, contrapondo o popular - em que, historicamente, se manifestava maior influência indígena e afro-brasileira - à alta cultura.

De acordo com o crítico, a iníqua sociedade brasileira, segregada em camadas, confinava o povo a usufruir somente a cultura popular. Esta seria de menor valor e mais limitada do que aquela erudita - um sinônimo de europeizada -, marcada pelo cânone literário.

Mergulhado em colonialismo, faltou a Candido o exercício da crítica - e da autocrítica. O argumento de Candido legitimava a alta cultura e seus sistemas sociais de produção, que incluíam instituições, sujeitos e normas.

Contudo, esse sistema se realizava sob a gestão do estrato social onde sempre prosperou o eurocentrismo: a elite sociocultural. Era justamente esse o estrato responsável pela aplicação do colonialismo nos trópicos, que segregava a população em camadas, e que desumanizava não-europeus e seus descendentes.

Identificando a literatura com as formas de tradição europeia, Candido corroborava a concepção eugenista da história. Partia-se do primitivo, correspondente ao elemento não-europeu, em direção ao civilizado, ao universal.

O viés de Candido foi forte o suficiente para cegá-lo diante de seu material de trabalho. A história literária nacional demonstrava o contrário do que ele afirmava. Não foi através de erudição que se produziu a característica brasileira da literatura.

Pelo contrário, foi quando tais visões preconceituosas, colonialistas, erodiram. Foi pela música e festas populares do interior do país e na capital federal, Rio de Janeiro, inventando-se novos gêneros musicais entre o final do século XIX e início do século XX. Foi no mergulho franco de literatos, a começar por Manuel Bandeira, nessas fontes.

Em suma, tem sido (porque processo ainda em curso) a cultura popular que humaniza a erudição eugenista dos produtores de literatura no Brasil.

O Manto da Invisibilidade

Elaborada em princípios colonialistas, as diversas "histórias" da literatura brasileira apresentam o manto comum da invisibilidade. Elegem um conjunto de autores e obras adequados ao seu viés excludente e eugenista. O manto cobre e mantém invisível as produções de grupos não europeus e suas culturas.

Está presente em Antônio Candido. Está presente também na Introdução à Literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho. Assim como as demais obras do gênero, Coutinho indica que a literatura brasileira tem início com a chegada do colonizador e sua escrita.

De modo semelhante, a matriz europeia orienta o texto de Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira. O reconhecimento de manifestações populares aparece em sua obra de forma lateral, sem conceder estatuto de literatura plena às tradições orais ameríndias (como as narrativas míticas e cantos xamânicos) e afro-brasileiras (como as histórias de orixás).

Repete-se o mesmo viés nas demais obras de história da literatura brasileira, compreendida a partir do cânone eurocêntrico. Ainda que existissem tradições narrativas ameríndias, ricas em cosmologias, memórias e identidades coletivas, elas permaneceram deslegitimizadas. Reduzidas a uma "pré-história," sem relevância estética.

As histórias tradicionais da literatura brasileira buscam, dessa forma, caracterizar a emergência de uma identidade em que indígenas ou afro-brasileiros não são bem-vindos. Eis a contradição do país, pois, sem ambas, nenhuma brasilidade seria possível.

Ainda vivemos sob o signo do genocídio, da expropriação, da escravidão. O nosso atraso vem não de um descompasso com a Europa ou os Estados Unidos, ou de uma condição de inferioridade. O nosso atraso vem da incapacidade de romper o grilhão que nos prende a esses modelos.

Grilhão que nos coloca em conflito com a identidade brasileira, excluindo as culturas livres-rítmicas, orais ou cotidianas dos povos não-europeus, indígenas ou afro-brasileiros. Discriminando a cultura popular. A literatura decolonial surge justamente como crítica a esse modelo.

Grilhão que, sobre a cabeça do estrato superior da sociedade, serve-lhe de coroa, com a qual exercem, feito europeus através do Atlântico, seu poder autocrático. O futuro da historiografia literária brasileira está em reconhecer o que foi apagado e celebrar as vozes que resistiram e ainda resistem.




Por Ana Clara Melo
Crítica Literária