Existe ódio pela poesia?

Ilustração em estilo de gravura de pessoas jogando livros numa fogueira, sob um céu dominado por letras. A imagem evoca censura e rejeição.
Publicado recentemente no Brasil em livro, o ensaio Ódio à Poesia, do norte-americano Ben Lerner, levanta uma perspectiva, no mínimo, polêmica. Ele retrata a poesia como "uma arte odiada, por fora e por dentro," uma arte que "assume a aversão de sua audiência," sendo o poeta um estimulador dessa aversão.

O ponto de partida é a experiência pessoal de Lerner. Depois de ler um verso de poesia no nono ano, fixou-se em sua sensibilidade a noção de "não gostar de poesia." Ao longo dos anos, esse traço pessoal permaneceria, ainda que o autor trabalhe com literatura ou escreva poesia: "eu não gosto dela."

O ensaio consiste, em grande medida, na projeção dessa particularidade de seu gosto individual a toda a poesia. Um ato monumental de narcisismo, que negligencia ou distorce a vasta e rica história da literatura.

Ódio Fake

A partir da constatação de que existem pessoas que expressam um gosto que não inclui a poesia, Lerner transforma, sem justificativas factuais ou históricas, o "não gostar de poesia" em ódio. Utiliza, para tanto, artefatos retóricos abstratos, como a sentença de que "muito mais gente concorda que odeia poesia do que é capaz de concordar sobre o que é poesia."

Trata-se de um truque barato. A primeira parte da sentença supõe uma unanimidade sobre o que é poesia, pois só é possível odiar aquilo que se tenha alguma ideia do que seja. Já a segunda parte derruba por terra a unanimidade, pois afirma que ninguém consegue definir com precisão o que seja poesia. Como, então, odiá-la?

Além disso, basta o senso comum para compreender que a ausência de gosto não se traduz necessariamente em ódio. Há uma considerável parcela da população que não só gosta, como ama a poesia, um veículo essencial para a expressão humana. E tal parcela, de posse da tecnologia digital, está por trás de uma grande expansão poética, escrevendo, lendo e compartilhando poesia na internet.

Quando Lerner afirma que "quase todos os anos sai um ensaio em um periódico mainstream denunciando a poesia ou proclamando sua morte," ele oferece um retrato extremamente superficial da crítica literária. A se guiar pelo exemplo brasileiro, a crítica da poesia contemporânea se caracteriza pelo debate e pelo contraponto entre distintas perspectivas. Não existe consenso ou visão hegemônica de denúncia ou de proclamação de morte da poesia.

Boa parte da crítica "denuncista," aliás, dirige-se à significativa amplidão da produção poética atual, à sua característica plural e fragmentária. Não porque seja aversa ou tenha ódio; pelo contrário, posiciona-se como defensora da poesia e de seu cânone.

E o fato da produção poética atual ter se ampliado oferece testemunho que vai de encontro ao argumento de Lerner, pois denota um gosto crescente pela poesia entre as pessoas, ou, talvez, somente uma crescente visibilidade desse gosto.

Desabafos de Frustração

A origem da visão negativa de Lerner se encontra na sua interpretação de que "a poesia surge do desejo de ir além do finito e histórico - do mundo humano da violência e das diferenças - para alcançar o transcendente ou divino." É uma interpretação que divide a realidade em dois planos: um infinito e alternativo, e outro material.

Esses dois planos jamais se tocam. Para Lerner, "a canção do infinito é comprometida pela finitude dos termos." Ou seja, seria impossível converter esse plano paralelo, virtual, em palavras inscritas no papel, o que faria de todo poema um fracasso. Eis o que acontece com Lerner, segundo ele mesmo relata: entre o que ele tenta fazer - sua inspiração do plano transcendental - e o que ele de fato produz, concretamente, resta uma distância de qualidade.

Estamos diante de um eco do platonismo. Os primeiros filósofos gregos buscaram investigar o princípio ou a origem da existência do mundo utilizando, em vez dos mitos, a razão. Heráclito identificou que, na natureza, tudo flui, nada persiste nem permanece o mesmo. Dessa oposição entre ser e deixar de ser, entre criar e destruir, a mudança, o devir, emerge como elemento imutável. Aí residiria o princípio de toda a existência.

Parmênides adotaria uma posição mais radical. Para ele, as coisas em constante mudança não passariam de aparências percebidas pelos sentidos. A mudança não existiria. A verdade - ou a essência - poderia ser descoberta por meio da razão, ao verificar que nas coisas passageiras da natureza, permaneceria o Ser, imutável e eterno, passando de umas para outras por meio da transformação.

Apesar de tentarem explicar o mundo pela razão, os filósofos ainda carregavam um bom grau de misticismo. Esse viés ganharia contornos religiosos com Platão. Em sua Teoria das Ideias, ele ressaltava a dificuldade em apreender a natureza em constante mudança. Do mundo que nos cerca, que nos é dado a conhecer pelos sentidos, sempre mutável, em movimento, múltiplo, pode-se ter opiniões que não vão além das aparências.

Contraposto a esse mundo natural, Platão admitiu a existência de um mundo inteligível, formado por ideias e formas puras, no qual se localizaria a verdadeira explicação para as coisas e fenômenos mutáveis da natureza. Ao caminhar por um bosque, uma pessoa se depara com uma diversidade de plantas com características distintas - troncos, galhos, folhas ou tamanho. Apesar da multiplicidade de aparências, essas plantas podem, no entanto, ser identificadas pelo mesmo conceito do mundo inteligível, como árvores.

Trata-se de uma teoria do conhecimento, uma primeira aproximação do entendimento sobre linguagem e semiótica. O esforço de Platão, entretanto, sofria de graves limitações por causa do viés místico e religioso, quebrando um preceito fundamental da filosofia de Parmênides, o de que nada surge do nada, nem mesmo o pensamento surge do nada, baseando-se em objetos existentes - preceito que sustenta a semiótica moderna.

O mundo das ideias e das formas de Platão era um jardim do nada. Então, quando Lerner recorre à "canção do infinito" para abordar a poesia, ele está recorrendo a nada. Apenas outro artefato retórico vazio, com fins de justificar sua frustração em escrever poemas imperfeitos. O fracasso do poema não é ontológico, é comunicativo.

Poemas aquém do transcendente-divino, abstração que se refere a nada concreto. Então, se se trata de algo indefinido, como pode Lerner se sentir frustrado quando faz um poema? O que é esse "ideal, algum Poema," com o qual ele compara sua produção?

Ora, em literatura, onde se encontra algo correspondente à idealização do transcendente-divino, senão no cânone? Esse grupo seleto de poetas, lido e reconhecido, ao longo do tempo, como representantes da máxima expressão estética de uma cultura, daquilo que é belo, excepcional.

Nesse sentido, a questão de fundo, que guia a argumentação retórica de Lerner, é sua frustração ao elaborar poemas sob a sombra do cânone, e não o problema inerente à poesia.

A Lente Deturpada

Também não se deve considerar a poesia como uma arte congelada e ocidental. Longe de ser um ideal estático, a poesia é uma forma de expressão, formada por elementos concretos como textos, suportes, memória, pessoas e suas práticas, normas e instituições. De todos os cantos do planeta. E assim como as demais coisas da natureza, a poesia também está em constante mudança.

E, de fato, modificou-se radicalmente ao longo da história. Entre os astecas, a poesia integrava a vida cotidiana à dimensão sagrada e à filosofia, ordenada em rituais combinando canto, dança e música. Havia escolas e academias para o ensino da poesia. Ela incluía hinos aos deuses e seus mitos, histórias do passado, filosofia, entre outros. O consumo era coletivo e participativo, com a comunidade engajada na performance e na audição dos cantos.

A poesia dos povos originários da América do Sul era uma arte complexa, englobando diversos gêneros. De matriz oral, incluía cantos xamânicos, falas de chefe, cantos de cura, além de inúmeros outros cantos de festas e rituais, ou narrativas míticas. Fonte e repertório do conhecimento comum, algumas criações se marcavam de lirismo. Falavam de temas como o surgimento do céu e da terra, dos antepassados, dos animais e dos próprios brancos.

China, Índia, Japão, os árabes: antigas civilizações em que floresceu o mesmo fenômeno da poesia, cada qual com sua particularidade. A poesia era a expressão literária de uma cultura. Mesmo na única antiguidade citada pelo eurocentrismo - a Grécia Antiga -, ela estava intrinsecamente ligada à oralidade, cumprindo funções cruciais na vida social e religiosa.

Basta essa pincelada em exemplos históricos para que a afirmação de que a poesia seria uma arte que "tem como condição de sua possibilidade um perfeito desprezo" soe esdrúxula. Na verdade, tal afirmação só se sustenta mediante o apagamento dessa diversidade cultural da poesia. E aqui se revela outra lente deturpada do ensaio de Lerner: a raiz colonialista.

Dores do Egoísmo

Fica claro que o ensaio não se aplica à poesia dos outros, à poesia das múltiplas antiguidades humanas. O foco de sua retórica é uma forma determinada, no tempo e no espaço, de poesia. Aquela que se conforma na Europa após o declínio do império romano, quando ela começava a se associar mais à escrita e à circulação de manuscritos.

Uma poesia que acompanhou a evolução das sociedades europeias mercantilistas em industriais-capitalistas, forjadas e ainda hoje sustentadas nos pilares da violência colonial. Alterada pela ascendência da prosa, sob influência de mudanças na prática da leitura e da escrita, da literatura enquanto mercadoria de consumo, a poesia sofreu uma profunda metamorfose.

Nesse novo contexto sociocultural, no qual se geram outras identidades pessoais, o gosto passou a se constituir elemento de referência no usufruto de produtos culturais. As questões levantadas por Lerner, que em outros tempos e culturas soariam como ridículas ou tolas, só podem ser formuladas com verniz de razoabilidade nessa modernidade europeizada.

O passado é escolhido (entre uma enorme diversidade) e interpretado de modo a reforçar as ideias de uma "insuficiência dos poemas," ou de que "o problema fatal" da poesia consiste no poema. O fato, contudo, é que o poema consiste no elemento concreto e essencial. A poesia existe no poema, e por meio dele. Se eles fossem um fracasso, não haveria sentido na poesia.

As sociedades capitalistas lograram a construção de subjetividades egoístas, atomizadas. O reflexo disso na poesia é a ênfase na pessoalidade, nos sentimentos, na relação do indivíduo com o mundo. Todavia, enquanto objeto concreto, um poema sobrevive apenas através da leitura e do acolhimento coletivo, cultural.

A frustração de Lerner, seu mergulho no misticismo abstrativo, talvez derive da angústia a que se expõe o egoísmo da modernidade, frente ao desafio de se fazer reconhecido no coletivo. A questão de fundo é a performance individual: Como enfatizar a subjetividade, os sentimentos, sem que sejam pessoais, mas de todos? Como ser trezentos, trezentos-e-cinquenta?

Bastará fingir a dor que deveras se sente? Eis um caminho. Mas não se esqueça que a luta com palavras é a luta mais vã, e parece sem fruto. Que é uma caça ao vento. Existirão, é certo, momentos em que o sapiente amor ensinará a fruir a essência das palavras, mas tudo logo se evapora, e o inútil duelo jamais se resolve.

E, ainda assim, com tamanha paixão, lutamos.

Para escapar do egoísmo.

Para escrever um poema.




Por Ana Clara Melo
Crítica Literária