Para que Serve a Crítica Literária?

Desenho japonês de crítico literário calvo, fumando, sentado em escritório com estantes de livros. Espelho reflete a palavra "Crítico". Simboliza introspecção.
A crítica abrange o conjunto de pessoas, profissões, atividades e instituições voltadas à compreensão e interpretação do fenômeno literário.

Em uma visão tradicionalista, um dos elementos centrais da crítica literária é definir a herança literária de uma cultura. Ela teria o poder de selecionar e eleger as obras do cânone, aquelas nas quais recai maior prestígio, consideradas as mais relevantes na história das letras de um povo.

Daí a imperiosa necessidade de se criticar a crítica, trazer sua prática para debaixo de uma lupa, vigiar contra seus erros. Em especial quando se torna domínio exclusivo de um grupo intelectual.

Sem prudência, a crítica literária padece de um péssimo vício: o elitismo.

Passado versus Presente

Dizem que o principal foco da crítica é o passado, a investigação de obras literárias antigas para estabelecer o seu valor. Pela análise dessas obras, elas podem ou não se perpetuar na memória cultural coletiva, a depender se forem admitidas no cânone.

Tomar o passado como o objeto privilegiado da crítica literária constitui um ato de elitismo. Tal abordagem contrasta o passado com o presente. O primeiro abrangeria uma produção que chegou ao fim, sobre a qual a crítica se debruça para a formação de consensos, valores e hierarquias.

O segundo, por sua vez, é um animal livre na natureza, aberto a uma pluralidade de vozes, debates, encontros e desencontros. Dele a crítica se manteria à parte, sem se contaminar.

Uma proposição descabida. Qualquer atividade humana se exerce em um determinado momento histórico, marcada pela cultura de um espaço e tempo. Assim ocorre na literatura: a crítica se volta ao passado com as lentes que estão disponíveis no presente, pronta a sempre revisar e refinar a sua análise do cânone.

Além disso, para entender a si mesma, a crítica literária deve também entender o presente. A fim de se ocupar do passado, a crítica literária tem que mergulhar na atualidade. Deve pular de cabeça nesse mar disforme e, volta e meia, polifônico da produção literária atual, libertando sua curiosidade, envolvendo-se com os demais atores, mediando e correndo riscos.

E talvez não exista material mais interessante para se submeter ao crivo do que aquele do momento histórico vivo, onde é possível reconhecer novas vozes ou a formulação de tendências.

Uma crítica que desmerece o presente, feita uma rainha deposta, tem o seu pescoço de fina realeza sob a guilhotina. Na prática, está morta.

Obras versus Fenômeno

O erro anterior se baseia na visão de que o elemento central da literatura são as obras literárias, objetos sobre os quais a crítica se debruça em perpétua releitura e requalificação. Trata-se de um reducionismo. O objeto de estudo da crítica é o fenômeno da literatura, do qual as obras participam enquanto elo.

Central para o fenômeno da literatura são as práticas da escrita e da leitura. Uma crítica que se propõe unicamente a analisar obras, em particular do passado, mais do que limitada, consiste numa crítica ignorante de si mesma e de seu objeto de estudo.

Foram mudanças na prática da escrita e da leitura que deram origem ao fenômeno literário moderno. Tais práticas se organizam e ganham propósito em modos de vida socioculturais, cujos exemplos atuais incluem as escolas, as bibliotecas, as universidades e seus cursos de letras, editoras, gráficas e livrarias.

A fixação com o cânone e suas obras constitui também uma fixação com o valor estético, aquilo que faz de um documento escrito uma obra literária. O conceito, no entanto, manifesta-se de forma abstrata e não raro imprecisa, ganhando contornos pelo manuseio de profissionais e instituições do meio literário.

Quando se elege o passado como elemento central da crítica, o valor estético se transforma em instrumento de hierarquização. Para tanto, isola-se artificialmente o conceito estético no interior da obra, cindindo-o de outras contribuições socioculturais. No fundo, um ato de vaidade, pelo qual o crítico e sua rede ganham poder sobre a história literária.

Eis um vício ainda mais ignominioso no Brasil, onde o fenômeno literário ocorre sob a marca da desigualdade. A média anual de livros lidos por habitante é muito baixa, assim como o nível de leitura - indicador da capacidade de compreensão - e o número de pessoas que compram livros. Mesmo as classes mais ricas têm baixo hábito de leitura.

O Presente Ebuliente

Um dos piores produtos do elitismo da crítica literária é o diagnóstico de uma crise na produção literária atual. Diagnóstico proposto mesmo diante de um panorama de crescimento na criação e circulação de obras literárias, em especial por meio de tecnologias digitais.

O surgimento de novos canais, mais acessíveis, viabilizou uma enxurrada de literatura. Avanços em equipamento gráfico abriram o campo das editoras de pequenas edições. Revistas eletrônicas, aplicativos e mídias sociais se converteram em meio de escrita e leitura. Para uma parcela de autores, tornaram-se o meio privilegiado de sua obra. O fenômeno literário presente está ebuliente.

Quem são os atuais autores? E os leitores? Qual o papel da tecnologia e de outros modos socioculturais nas práticas da escrita e da leitura? O que escrevem, como escrevem, o que leem, onde e como leem? Que tipo de estética circula nos diferentes meios eletrônicos? Qual o impacto disso num país como o Brasil? Seria possível criar uma lista sem fim de perguntas.

Frente ao dilúvio literário presente, descortina-se um campo riquíssimo para investigação. Em vez de ditar que a produção é ruim, negando-se sequer a uma investigação, a crítica literária deve abraçar o fenômeno da atualidade, dissecá-lo, questioná-lo, para então, do interior de sua múltipla disformidade, tecer compreensões.

Assim iluminará o presente, o passado e a si mesma. A crítica, hoje, deve menos julgar a obra e mais mapear as práticas, definindo novos eixos de valor que não sejam apenas estéticos, mas também sociais e culturais.




Por Ana Clara Melo
Crítica Literária