Os poetas doentes
No cerne da formação de uma "identidade brasileira", encontra-se a seguinte questão: como ser diferente do europeu se o processo de ocupação colonial se baseou justamente na eliminação da diferença? Como se forma esse ser "brasileiro", gerado a partir de práticas de genocídio ou eugenistas - como a escravidão - de povos não europeus?
Entre as diversas manifestações culturais, a literatura escrita consiste numa das mais elitistas. Ela demanda um processo de educação formal, longo e custoso. Na virada do século XIX para o XX, a alfabetização era privilégio de uma pequena parcela da população.
O acesso a bibliotecas e livrarias era uma realidade para poucos. Além disso, a literatura escrita está repleta de referências intertextuais, históricas e filosóficas, e aspira a uma linguagem e a um vocabulário eruditos. Naquela época - e, em grande medida, ainda hoje -, a plena compreensão de uma obra exigia conhecimento prévio - uma bagagem cultural - do contexto sociopolítico brasileiro e da cultura europeia.
Como qualquer outra atividade, a de escritor ou poeta é uma prática social, parte do mundo literário. Um autor se consolida mediante o reconhecimento nesse mundo, em círculos literários compostos por outros semelhantes e por instituições como academias. O campo da literatura escrita possui regras que norteiam o espaço de realização do que é a boa literatura.
Durante o Romantismo e depois, esse campo era um pequeno clube fechado aos membros - praticamente homens, educados em universidades do país ou da Europa. Esse grupo, profundamente imerso no eurocentrismo, frente à independência brasileira, viu-se diante do desafio de disputar a imagem da qual eram espelho.
Tentaram dar nó em pingo d’água. Como se afirmar brasileiro, sendo representante de um movimento estético importado da Europa - romantismo, parnasianismo ou simbolismo - e membro de uma elite europeizada?
A resposta, em especial dos românticos, pecou pela qualidade. A poesia sofreu de sentimentalismo, que, nos piores momentos, descia ao melodramático e artificial. Recorria-se excessivamente a clichês ou lugares-comuns, como a idealização da mulher branca e da natureza. E o tema do "ser brasileiro" foi abordado de forma superficial, ufanista, sem uma reflexão crítica ou social e explorando um indigenismo simplório.
O romantismo brasileiro, no entanto, ganhou grande reconhecimento. Um dos melhores poemas do período, a "Canção do exílio", de Gonçalves Dias, foi alçado a símbolo nacional.
A tuberculose contribuiu para esse sucesso do movimento. Ela afligiu e matou, em geral na juventude, diversos escritores e poetas - os românticos Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves e Gonçalves Dias, além de representantes de outras escolas, como Carmen Freire, Cruz e Sousa, Eduardo Guimaraens e Raimundo Correia. Francisca Júlia se suicidou após a morte do marido por tuberculose. A doença levou a noiva de Alphonsus de Guimaraens.
Um dos efeitos da tuberculose foi a construção de um sujeito poético marcado ou martirizado pela morte precoce. Forneceu capital simbólico para a legitimação da literatura do período e sua proposição de identidade brasileira, mesmo que ainda precária.
O Brasil nasceu popular
As reverberações do período chegaram até o início do século XX, tanto em relação às persistências coloniais que condicionavam os autores, as instituições e os temas que a literatura viria a assumir, quanto em relação à busca de uma identidade brasileira.
A primeira geração modernista intencionava se atualizar às vanguardas europeias, promovendo rupturas formais e experimentações temáticas. Simultaneamente, intentava uma atualização que valorizasse a identidade brasileira. Para tanto, o viés colonialista de poetas como Mário e Oswald de Andrade se confrontaria com uma pesquisa estética de manifestações populares.
Precisavam que o popular os salvasse deles mesmos, ainda eurocentristas, ainda reprodutores da visão eugenista de categorização de povos em civilizados, bárbaros ou selvagens, e de pessoas em raças. Uma vacina para sua condição de membros da elite - estrato que historicamente foi o principal veículo de manutenção do colonialismo.
E, de fato, o que os modernistas sonhavam fazer, ou almejavam ser, desenvolvia-se espontaneamente pela cultura popular, mesclando raízes indígenas, africanas e europeias. É através das festas populares espalhadas pelo país e da música em gestação na capital federal durante a segunda metade do século XIX que a substância brasileira se forma a partir dos remanescentes do genocídio e da escravidão.
O Brasil começou a surgir na invenção do maxixe, nos grupos de choro, em congadas e cateretês. Os modernistas estavam ainda em fraldas quando a literatura da música popular, de celebrações como o carnaval, promovia a linguagem da gramática oral cotidiana, abraçava o humor ou elegia a mulata e a morena como ideais de beleza.
Como tecer um diálogo franco, sem preconceitos, com a brasilidade nascente, se os representantes da elite literária ainda guardavam no interior de si mesmos o espelho do europeu?
O tísico humilde
Entre os modernistas de primeira hora, somente um deles logrou a combinação do experimentalismo estético com a brasilidade popular. Tornou-se, por isso, um dos maiores poetas brasileiros. Foi Manuel Bandeira. Para tanto, ele contou com a trágica ajuda da tuberculose.
Manuel caminhava numa trajetória típica de um membro da elite do país. Seguindo os passos do pai, ele se mudara para São Paulo com o objetivo de cursar engenharia-arquitetura. Aos 18 anos, contudo, descobriu-se infectado pela tuberculose. Passou os próximos 11 anos em luta contra a doença, entre a vida e a morte.
Sobreviveu. Além de graves sequelas, a doença tolheu para sempre seu itinerário na vida. Em vez de engenheiro-arquiteto, envolveu-se com as letras e o jornalismo, publicando o primeiro livro aos 31 anos. Foi, dessa forma, um dos mais velhos entre os primeiros modernistas. Considerava-se um poeta menor, que convertia a experiência do adoecimento em recurso poético: a finitude, a ironia, o humor trágico da vida que poderia ter sido e não foi.
Mas, além disso, a tuberculose, uma doença repleta de estigmas sociais, ao tomar-lhe a saúde, quebrou o espelho interno de Manuel, no qual se refletia o europeu. Abriu-lhe a sensibilidade para o lirismo cotidiano, bebendo em fontes populares. O poeta tísico, então, incorporou produtivamente a experiência pessoal e a materialidade social brasileira.
Foi aquele de sua geração que mais se aproximou de um músico popular, de um sambista. Porque, apesar de a alegria ser a melhor coisa que existe, para se abrasileirar a poesia, era preciso também um bocado de tristeza.
Por Ana Clara Melo
Crítica Literária
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