Entre o silêncio e a página: o ofício de escrever e o prazer de não escrever

Imagem em estilo de xilogravura com fundo branco, representando uma cena de escritório surreal formado por letras. No centro, uma figura feminina de traços tipográficos repousa numa letra “h” minúscula inclinada como cadeira, com os pés sobre outra letra que funciona como mesa. Ela está com os braços atrás da cabeça, em postura relaxada. Ao redor, móveis e objetos como computador, luminária e estante são compostos por combinações de letras minúsculas e maiúsculas, criando um ambiente gráfico e simbólico.  Se quiser, posso propor variações com foco mais literário, técnico ou lúdico. Deseja explorar outras abordagens?
O ato de escrever muitas vezes é apresentado de modo romântico, como uma atividade de prestígio, prazerosa e intelectual. Ter a escrita como exercício diário - em geral, espremida entre os outros afazeres da vida -, no entanto, pode constituir um desafio semelhante a qualquer outro trabalho.

A ponto de se obter maior prazer em não escrever do que em escrever. E não há nada de errado nisso.

Um trabalho como outro qualquer?

Um dos principais dilemas de quem se quer escritor ou escritora é o da escolha entre escrever e não escrever (ou parar de escrever). Em linguagem mais shakespeariana: entre ser e não ser escritor ou escritora. Realizar o ato da escrita implica encará-la como um trabalho, com todos os percalços que um trabalho pode ter.

A começar pela rotina. Para aqueles que se aventuram na literatura, um aspecto muito importante é a consistência na produção. Escritores e escritoras se formam e se aprimoram a partir das obras que criam e publicam.

Enfrenta-se, portanto, a batalha de escrever com frequência - diariamente? -, de estabelecer projetos, de cumprir prazos, de verificar a qualidade do texto produzido e de buscar sua melhoria. A jornada da escrita pode se tornar árdua.

Além disso, a escrita não depende do livre fluir da inspiração. Ela exige disciplina e esforço constante. Frequentemente se parece com escalar um muro de superfície plana para se chegar ao outro lado - ignorando-se o que nos espera do outro lado.

Estudos sobre hábitos de escrita mostram que a regularidade ajuda a prevenir o adiamento do ato de sentar e escrever. A adoção de sessões curtas e regulares reduz a possibilidade de bloqueios. Para quem escreve, usualmente se recomenda disciplina.

Cuidado, no entanto, com o conselho simplista de “escreva todo dia”. Esse compromisso cotidiano nem sempre se aplica a todas as pessoas ou contextos. Deve-se adotar a regularidade com nuance, adaptada ao ritmo e às condições individuais.

Sem renda nem reconhecimento

A prática da escrita notabiliza-se pela solidão. Se escrever pode trazer recompensas emocionais e satisfação pessoal, nem sempre traz reconhecimento. Ou o reconhecimento demora. Ou talvez nunca venha.

O mais provável é que jamais se escreva o livro mais vendido. De nunca ser o ganhador de um importante concurso literário. Nessa toada, constrói-se um conjunto de obras que encontrará mais ou menos leitores.

Diversos estudos sobre o mercado editorial contemporâneo mostram que a renda média de escritores profissionais tem diminuído nas últimas décadas. A maioria não vive apenas da literatura: combina o ofício com aulas, tradução, jornalismo, produção cultural, revisões ou outras formas de trabalho. Essa multiplicidade de atividades constitui a norma, e não a exceção.

Pierre Bourdieu já observava que o campo literário opera sob uma tensão constante entre o capital simbólico - o prestígio, o reconhecimento crítico, a legitimidade estética - e o capital econômico, a necessidade de sustento material. O sucesso literário muitas vezes se liga ao primeiro, à custa do segundo. O resultado é um sistema que valoriza o ideal do “artista criativo” e, ao mesmo tempo, precariza o seu trabalho.

O discurso de “liberdade criativa” costuma mascarar formas de precarização: contratos frágeis, ausência de direitos autorais efetivos, desigualdade de gênero e raça, e um modelo de trabalho que exige alta dedicação por baixa remuneração. Apesar desse cenário, o desejo de escrever persiste.

Por que, então, escrever? O que escrever? Onde publicar? Para evitar que a expectativa se transforme em desânimo, recomenda-se a companhia da humildade - e também do realismo - a quem faz literatura. Hoje, talvez mais do que nunca, escrever demanda uma negociação com o mundo material, sem que isso diminua o valor simbólico da criação.

Prazer de não escrever

Os empecilhos e o esforço criam situações em que não escrever é mais prazeroso do que escrever - tanto para o iniciante quanto para quem está na estrada há muito tempo. A procrastinação, quando se adia o momento de sentar e dar continuidade à escrita, surge como um refúgio.

Existe um certo alívio em evitar a tela ou a página em branco e assim permanecer por dias, semanas ou mais. Tudo bem: todo mundo precisa de uma folga. Mais do que isso - a pausa pode ser necessária. Pesquisas em psicologia sugerem que suspender temporariamente o trabalho permite um processo chamado incubação criativa. O problema ou texto inacabado continua a ser processado, e soluções inesperadas podem surgir quando menos se espera.

Há, portanto, um sentido produtivo no “não escrever”, desde que a pausa não se transforme em desistência. Ao mesmo tempo, estudos sobre procrastinação lembram que adiar indefinidamente o ato de escrever pode ser um mecanismo de fuga emocional.

O desafio está em distinguir o repouso fértil da paralisia improdutiva. O primeiro renova o olhar; o segundo corrói a confiança. O “prazer de não escrever” é, nesse sentido, ambíguo. Pode ser descanso, incubação e recuperação  ou pode ser fuga, autossabotagem e culpa.

O que decide é o modo como se retorna à escrita. Períodos de recuperação - sono adequado, tempo livre, afastamento mental das tarefas - são fundamentais para manter o bem-estar e a capacidade de criação a longo prazo. O repouso consciente é parte do processo, não o seu oposto.

Assim, depois do merecido intervalo, deve-se respirar fundo, manter a calma e teimar feito uma mula. Só que, ao contrário do dito popular, em vez de empacar, teimar em seguir adiante. Porque, no final, espera-se, a escritora ou o escritor encontrará satisfação no trabalho concluído - talvez seja imperfeito, mas terá um ponto final.




Por CF Scuo
Escritor