O ato de escrever muitas vezes é apresentado de modo romântico, como uma atividade de prestígio, prazerosa e intelectual. Ter a escrita como exercício diário - em geral, espremida entre os outros afazeres da vida -, no entanto, pode constituir um desafio semelhante a qualquer outro trabalho.
A ponto de se obter maior prazer em não escrever do que em escrever. E não há nada de errado nisso.
Um trabalho como outro qualquer?
Um dos principais dilemas de quem se quer escritor ou escritora é o da escolha entre escrever e não escrever (ou parar de escrever). Em linguagem mais shakespeariana: entre ser e não ser escritor ou escritora. Realizar o ato da escrita implica encará-la como um trabalho, com todos os percalços que um trabalho pode ter.
A começar pela rotina. Para aqueles que se aventuram na literatura, um aspecto muito importante é a consistência na produção. Escritores e escritoras se formam e se aprimoram a partir das obras que criam e publicam.
Enfrenta-se, portanto, a batalha de escrever com frequência - diariamente? -, de estabelecer projetos, de cumprir prazos, de verificar a qualidade do texto produzido e de buscar sua melhoria. A jornada da escrita pode se tornar árdua.
Além disso, a escrita não depende do livre fluir da inspiração. Ela exige disciplina e esforço constante. Frequentemente se parece com escalar um muro de superfície plana para se chegar ao outro lado - ignorando-se o que nos espera do outro lado.
Estudos sobre hábitos de escrita mostram que a regularidade ajuda a prevenir o adiamento do ato de sentar e escrever. A adoção de sessões curtas e regulares reduz a possibilidade de bloqueios. Para quem escreve, usualmente se recomenda disciplina.
Cuidado, no entanto, com o conselho simplista de “escreva todo dia”. Esse compromisso cotidiano nem sempre se aplica a todas as pessoas ou contextos. Deve-se adotar a regularidade com nuance, adaptada ao ritmo e às condições individuais.
Sem renda nem reconhecimento
A prática da escrita notabiliza-se pela solidão. Se escrever pode trazer recompensas emocionais e satisfação pessoal, nem sempre traz reconhecimento. Ou o reconhecimento demora. Ou talvez nunca venha.
O mais provável é que jamais se escreva o livro mais vendido. De nunca ser o ganhador de um importante concurso literário. Nessa toada, constrói-se um conjunto de obras que encontrará mais ou menos leitores.
Diversos estudos sobre o mercado editorial contemporâneo mostram que a renda média de escritores profissionais tem diminuído nas últimas décadas. A maioria não vive apenas da literatura: combina o ofício com aulas, tradução, jornalismo, produção cultural, revisões ou outras formas de trabalho. Essa multiplicidade de atividades constitui a norma, e não a exceção.
Pierre Bourdieu já observava que o campo literário opera sob uma tensão constante entre o capital simbólico - o prestígio, o reconhecimento crítico, a legitimidade estética - e o capital econômico, a necessidade de sustento material. O sucesso literário muitas vezes se liga ao primeiro, à custa do segundo. O resultado é um sistema que valoriza o ideal do “artista criativo” e, ao mesmo tempo, precariza o seu trabalho.
O discurso de “liberdade criativa” costuma mascarar formas de precarização: contratos frágeis, ausência de direitos autorais efetivos, desigualdade de gênero e raça, e um modelo de trabalho que exige alta dedicação por baixa remuneração. Apesar desse cenário, o desejo de escrever persiste.
Por que, então, escrever? O que escrever? Onde publicar? Para evitar que a expectativa se transforme em desânimo, recomenda-se a companhia da humildade - e também do realismo - a quem faz literatura. Hoje, talvez mais do que nunca, escrever demanda uma negociação com o mundo material, sem que isso diminua o valor simbólico da criação.
Prazer de não escrever
Os empecilhos e o esforço criam situações em que não escrever é mais prazeroso do que escrever - tanto para o iniciante quanto para quem está na estrada há muito tempo. A procrastinação, quando se adia o momento de sentar e dar continuidade à escrita, surge como um refúgio.
Existe um certo alívio em evitar a tela ou a página em branco e assim permanecer por dias, semanas ou mais. Tudo bem: todo mundo precisa de uma folga. Mais do que isso - a pausa pode ser necessária. Pesquisas em psicologia sugerem que suspender temporariamente o trabalho permite um processo chamado incubação criativa. O problema ou texto inacabado continua a ser processado, e soluções inesperadas podem surgir quando menos se espera.
Há, portanto, um sentido produtivo no “não escrever”, desde que a pausa não se transforme em desistência. Ao mesmo tempo, estudos sobre procrastinação lembram que adiar indefinidamente o ato de escrever pode ser um mecanismo de fuga emocional.
O desafio está em distinguir o repouso fértil da paralisia improdutiva. O primeiro renova o olhar; o segundo corrói a confiança. O “prazer de não escrever” é, nesse sentido, ambíguo. Pode ser descanso, incubação e recuperação ou pode ser fuga, autossabotagem e culpa.
O que decide é o modo como se retorna à escrita. Períodos de recuperação - sono adequado, tempo livre, afastamento mental das tarefas - são fundamentais para manter o bem-estar e a capacidade de criação a longo prazo. O repouso consciente é parte do processo, não o seu oposto.
Assim, depois do merecido intervalo, deve-se respirar fundo, manter a calma e teimar feito uma mula. Só que, ao contrário do dito popular, em vez de empacar, teimar em seguir adiante. Porque, no final, espera-se, a escritora ou o escritor encontrará satisfação no trabalho concluído - talvez seja imperfeito, mas terá um ponto final.
Escritor
