Cânone em disputa: poder, instituições e a reconfiguração das leituras

Imagem em estilo de xilogravura, formato quadrado, com fundo branco. Uma coluna gigantesca de livros se ergue verticalmente do centro inferior até o topo, vista de cima com perspectiva distorcida. A coluna projeta uma sombra escura que encobre figuras humanas masculinas e femininas em preto, cercadas por uma enxurrada de letras tipográficas dispersas. A composição sugere o peso simbólico do conhecimento e sua relação com linguagem e identidade.
Uma importante mudança se observa no campo da literatura. A avaliação crítica quebrou o lacre da “caixa preta” do cânone literário, que, a partir de então, passou a ser debatido e questionado.

Isso é bom para a literatura - embora desconfortável para os velhos paladinos de uma tradição retrógrada. Nova luz e novos ares começam a penetrar na definição do cânone, sobretudo ao evidenciar que existem pessoas, instituições e normas por trás de sua formação.

Expôs-se a farsa do argumento segundo o qual uma obra ingressaria nesse rol exclusivamente por características estéticas inerentes - argumento que dissimula o fato de que todo fazer humano implica relações culturais, políticas e de poder.

O que é cânone literário

No século III a.C., um dos principais centros de conhecimento da Antiguidade era a Biblioteca de Alexandria, localizada no Egito. Marco cultural e símbolo de poder dos governantes egípcios, a biblioteca acumulava milhares de volumes literários, acadêmicos e religiosos.

Para classificar esse vasto material, os responsáveis pela biblioteca elaboraram listas de obras e autores considerados referência em diferentes ramos do saber - poesia, comédia, história e filosofia, entre outros.

Essas listas receberam o nome de cânone - do grego kanon, que significa “regra” ou “instrumento de medir”. A partir delas, era possível comparar e classificar outras obras. O termo clássico, de origem alexandrina, tornou-se equivalente a cânone, designando os livros de referência, os “modelos”.

Na atualidade, o cânone literário ganhou uma conotação distinta. Se na Antiguidade ele servia como instrumento de organização, hoje passou a representar uma lista de obras de suposta excepcionalidade, dotadas de valor universal e erudito. E, segundo a crítica tradicional, essas obras seriam escolhidas a partir de valores estéticos objetivos - como se críticos colhessem, num milharal, as espigas mais maduras.

Valores o quê?

A noção de cânone literário sustentava-se numa interpretação objetivista. Segundo essa lógica, a arte se constitui de objetos que apresentam valores estéticos próprios, passíveis de apreciação individual.

Essa concepção remonta à Antiguidade, quando filósofos gregos, como Platão e Aristóteles, buscaram definir o belo e o feio, a harmonia e a simetria - isto é, aquilo que provoca admiração ou conduz à contemplação.

Entretanto, a história mostrou que tais conceitos são mutáveis e imprecisos. Os limites entre o belo e o feio, o artístico e o vulgar, o literário e o não literário, são porosos. Os conceitos de arte e valor estético mudam conforme o tempo e o contexto sociocultural.

Pode-se provar o valor estético de uma obra em bases “científicas”? A história responde que não. As obras de arte - expostas em museus, bibliotecas e instituições culturais ao redor do mundo - revelam uma fascinante diversidade estética. A noção de um caráter universal se criou na Europa, enquanto artefato simbólico do colonialismo: baseava-se em modelos europeus de arte e, consequentemente, de literatura.

Obra e poder

Mais do que uma fórmula estática, a estética literária é uma manifestação fluida, situada na intersecção entre a organização sociocultural de uma época, o escritor e sua obra, o público leitor e o diálogo com a tradição.

No objeto literário, é possível identificar um conjunto de características formais e temáticas - estrutura, estilo, ritmo, linguagem - cuja avaliação depende de instituições de mediação cultural e da autoridade dos críticos. Professores, editores, jurados de prêmios, colunistas e, mais recentemente, influenciadores digitais participam desse processo de legitimação simbólica.

Esse circuito define os espaços de circulação do discurso literário - imprensa, academia, bibliotecas, escolas, secretarias de cultura, livrarias e editoras. Nesses espaços, o poder de atribuir estatuto literário a um texto e de hierarquizar obras é exercido continuamente. Assim se constitui o cânone.

Importa acrescentar que esses espaços não são neutros: políticas curriculares, critérios editoriais e regulações de mercado modelam quais obras são reimpressas, traduzidas e ensinadas. Estudos de formação do cânone demonstram que decisões administrativas e económicas têm impacto direto sobre que obras se tornam canônicas.

Assim, o poder de atribuir estatuto literário a um texto e de hierarquizar obras é continuamente exercido e negociado. O cânone consiste numa construção social e histórica. Sua análise exige investigação que combine crítica literária, cultural e dados empíricos (circulação editorial, programas escolares e prêmios literários).

Todos os matizes

Uma das manifestações mais visíveis desse arcabouço sociocultural se observa no cotidiano das redes sociais. Mensagens que listam “os melhores romances”, “o poema mais belo de fulano” ou “a citação mais inspiradora de sicrano” são eco de discursos emanados dos centros de poder do campo literário. Reproduzem e tentam se identificar com a ideia de “literário erudito”, cujo epicentro se situava no cânone.

A crítica contemporânea vem questionando esse modelo. Ela denuncia como o controle do poder simbólico distorce a recepção das obras, limita a liberdade dos leitores e molda a formação do gosto literário.

Inevitavelmente, o próprio cânone literário se torna alvo de revisão. Mais do que discutir quais obras devem integrá-lo, discute-se o que é o cânone e qual é o seu propósito. Nesse processo, revelam-se exclusões históricas - de mulheres, autores negros, indígenas e grupos marginalizados - que expõem o caráter político do cânone.

Não apenas uma omissão acidental, a exclusão de vozes marginalizadas era resultado de práticas discursivas e institucionais. A crítica pós-colonial e os estudos de gênero fornecem ferramentas analíticas para mapear como discursos literários naturalizaram certas vozes como universais, enquanto outras foram relegadas ao silêncio.

O esforço de reavaliação amplia o repertório de obras consideradas, promovendo uma visão mais abrangente da diversidade literária e enriquecendo o cânone. Trata-se de uma pluralização do gosto e da memória cultural, que desafia as fronteiras tradicionais da alta cultura.

A motivação por trás da criação literária é vasta e complexa, movida pelo desejo de expressar, comunicar e explorar as múltiplas facetas da experiência humana. Cabe à crítica zelar por essa dinâmica cultural, exercendo autocrítica institucional e metodológica, reconhecendo seus vieses e promovendo transparência no processo de legitimação.

Somente assim a crítica se constituirá como um espaço que valoriza a riqueza da tradição literária, abrangendo todos os seus matizes.




Por Ana Clara Melo
Crítica Literária