Listas que não acabam mais - Escritor CF Scuo
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Listas que não acabam mais

Elas estão por toda a parte. As listas. O melhor livro? O melhor poema? Dez cortadores de unha escolhidos? Elas compõem o DNA da rede mundial de computadores.

Um formato que infestou o cotidiano digital, muito devido à utilidade e praticidade. Mas a expansão dessa forma para outras aplicações tem a desgastado, em especial considerando o bazar de monetização do interesse alheio em que se transformaram os meios digitais.

E quando aplicadas à cultura, as listas podem ser ainda mais nocivas.

A rede é lista


Começou na década de 1990, com a criação da rede mundial de computadores. A rede se popularizou inicialmente por meio de listas de discussão através de correio eletrônico.

A evolução da internet levou à criação de conteúdo digital, incluindo fóruns e páginas online com listas de tópicos de discussão. À medida que o volume de informação disponível aumentava, o uso das listas também.

Elas forneciam uma maneira fácil e conveniente de coletar e compartilhar informações. Também permitiam que os usuários compartilhassem opiniões e ideias com outras pessoas em todo o mundo. Passaram a existir listas em vários formatos, de tarefas, de verificação, de desejos, entre outras.

O resultado da sua pesquisa na internet é apresentado na forma de uma lista de nomes e links de endereços eletrônicos, um após o outro. As mídias sociais apresentam listas intermináveis de mensagens e os celulares, de contatos.

Nós nos tornamos listas


O mundo digital está revolucionando as sociedades. Nossa comunicação, nossas interações, nosso intercâmbio de informações e ideias estão cada vez mais mediados pelas tecnologias e pela internet.

Existe, todavia, um monumental obstáculo para o estável funcionamento social. Como estruturar e dar organização à quantidade exaustiva de conteúdo que se produz e circula digitalmente?

A solução, por nossa conta e risco, tem sido deixada ao deus dará. Se há uma divindade que não sabe perdoar, é o deus dará. E assim parece que o próprio modo de construir a rede por listas se projetou como solução ao caos que se instalava.

Frente à enorme quantidade de fontes, pontos de vista, opiniões e informações disponíveis na rede, as listas vieram em nosso socorro. A solução para distinguir o que é relevante e o que não é, para sintetizar e resumir, para guiar as nossas buscas.

Daí depositarmos em listas uma grande confiança. Precisa de um secador de cabelos? Veja a lista dos 10 melhores secadores, ou dos 10 secadores que consomem menos energia, ou dos 10 secadores mais silenciosos.

Impregnada dessa forma indispensável, quase milagrosa, da lista, os agentes da internet logo decidiram explorá-la para benefício próprio. Usam listas para tentar angariar uma audiência maior e, com isso, faturar mais. Ou então para, disfarçadamente, promover um produto ou marca.

Nós, os aficionados em listas, navegamos então de uma a outra e depois outra, deixando para trás, em cada espaço da internet visitado, um rastro de nós mesmos que as empresas de tecnologia vão juntando em uma lista só delas: a de nossa personalidade e hábitos.

Qualquer um, hoje em dia, é uma lista.

Só porque está na lista é bom?


O campo cultural consiste em um dos melhores exemplos das mazelas desse mundo de listas em que nos transformamos. Basta um clique para acessar listas de literatura - o melhor escritor? o melhor poeta? -, de música ou de cinema.

Somente em sua forma abstrata, uma lista se manifesta como um artefato neutro e imparcial. Um exemplo de forma abstrata é a lista de compras: essa forma existe e está à disposição de uma pessoa para uso.

Mas quando alguém se apropria da forma abstrata e produz uma lista concreta, a neutralidade e imparcialidade acabam. No nosso exemplo, quando a lista de compras é elaborada pela mãe ou pelo pai, ela ou ele incluirá os itens que julga necessários. Se a lista fosse elaborada pelos filhos, ela provavelmente conteria itens diferentes - mais biscoitos ou doces.

Outra questão negativa diz respeito à pretensão das listas culturais de estabelecer o que é bom e o que não é. Tal separação se fundamenta em uma visão de superioridade e hierarquização cultural, obviamente lastreada pelas opiniões, preferências e interesses de quem as elabora.

São características cruciais de qualquer cultura a sua diversidade e temporalidade. O que é amplamente considerado bom muda ao longo do tempo e do espaço. Obras ignoradas ou subestimadas no passado podem ser valorizadas com o tempo, à medida que as perspectivas culturais mudam. E obras de sucesso podem desaparecer.

Em literatura, como em outras artes, historicamente se observam grupos marginalizados. As listas podem reproduzir esse silenciamento. Aqui se revela que a internet herdou e reforça regras e ordenamentos sociais anteriores. A culpa, no fim das contas, não é da tecnologia, mas de quem a construiu e controla.

A ideia de superioridade e hierarquização na literatura está ligada à história do cânone literário, em grande medida um produto do colonialismo: de origem branca, masculina e europeia. O cânone, por muito tempo, serviu para delimitar a excelência literária, relegando obras de outras vozes e grupos - exemplares da diversidade cultural - a um status secundário.

Sem descanso


Talvez uma lista seja útil para comprar um eletrodoméstico ou para saber quais filmes estão em cartaz no cinema. Mas elas também mostram o espírito ainda mercantilista que estrutura nossas sociedades.

Se a riqueza em cultura está na diversidade e complexidade, nossa vida social se orienta a outro tipo de riqueza. Uma riqueza que só descansará depois de transformar a natureza e as pessoas em listas.





Por CF Scuo
Escritor


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