O que é um escritor ou uma escritora?
Não se trata daquela pessoa que alcançou sucesso editorial e vendeu milhares de livros. Tampouco de quem entrou para o cânone literário.
Um escritor ou uma escritora é quem possui a necessidade e realiza constantemente o ato de escrever. A pessoa que precisa recorrer às palavras escritas para se expressar - independentemente de o que se cria constituir ou não uma obra excepcional.
Carlos Drummond de Andrade lembrava que “a luta com as palavras é em vão”. Mesmo assim, essa luta se trava mal começa a manhã. É uma prática que nasce menos da ambição do êxito e mais da necessidade de comunicar e compreender o mundo pela escrita.
Se esse é o seu caso, existe um elemento que você - se ainda não o tem - pode adotar: um companheiro para todas as horas, a ser levado para todos os lugares, quase sem exceções. Um caderno de anotações.
Hábito faz o monge
De nada adianta ter um milhão de ideias na cabeça. Criar diálogos ou cenas de uma história na imaginação não basta. Escrever consiste em transportar observações mentais sobre o mundo e sobre nós para o papel - ou outro suporte - que as preserve.
Um caderno de anotações auxilia na formação do hábito de extrair essas observações da consciência para o papel. Ver, pensar o mundo e escrever a respeito também são práticas que se podem cultivar com o tempo. O caderno contribui para estabelecer uma rotina: manter olhos e ouvidos abertos, refletir sobre o que se passa ao nosso redor e anotar no papel.
O ato de anotar serve tanto para registrar acontecimentos quanto para lembrar os sentimentos que se experimentou. O caderno pode ser mais do que um diário de fatos, uma forma de arquivo da percepção - uma extensão da consciência criadora.
Embora o processo de escrita possua altos e baixos, o caderno auxilia a atravessar os momentos mais difíceis. Ele é, de certa forma, um espaço de resistência: quando o texto maior não vem, a página pequena do caderno mantém o escritor em movimento.
De tudo ou para uma coisa só
Um caderno de anotações pode funcionar como um pequeno museu de curiosidades, onde se lança de tudo: ideias, pedaços de texto, impressões, transcrições do que se escutou. Nesse caráter aleatório, ele se abre ao livre fluxo da curiosidade, da criatividade, de erros e bobagens.
Nele cabem desde frases de uma só palavra até textos longos. Ali se guardam coisas das quais, talvez, se retire algo para um projeto futuro de escrita. O caderno possui uma função híbrida. Trata-se de um “espaço liminar” entre a vida e a obra, entre o impulso espontâneo e o trabalho literário estruturado. O caderno é simultaneamente rascunho, arquivo e campo de experimentação.
Por outro lado, o caderno pode gravitar em torno de um propósito: talvez aquela história que se planeja escrever. Nesse caso, procede-se a uma garimpagem com um centro gravitacional específico, que vai atraindo material que o complemente.
De seus diários, Virginia Woolf fazia laboratórios da criação, locais onde ela testava ideias, vozes narrativas e ritmos antes de transportá-los para os romances. Assim, o caderno torna-se um espaço preparatório, onde o gesto de escrever é ensaiado em liberdade.
Escrita do dia a dia
Ao permitir que uma pessoa explore suas experiências e reflexões em papel, o caderno de anotações estimula o hábito da escrita cotidiana. A consistência é componente essencial para um escritor; ou melhor, a devoção ao ato de escrever.
Os diários de Carolina Maria de Jesus, a partir dos quais se construiu o livro "Quarto de despejo", ensina que escrever não é uma prática reservada a pessoas escolhidas, mas a qualquer pessoa que persevera na escrita. Inclusive para aqueles, como era o caso de Carolina, cujas vozes e realidades são silenciadas.
O caderno de anotações mantem a voz viva, num ato de resistência. Estabelece um modo de continuar escrevendo, mesmo quando não se sabe bem por quê. O caderno, nesse sentido, é o ofício da escrita como uma conversa contínua entre o olhar pessoal e as palavras.
Nota final: nada obrigatório
deve-se frisar que o caderno de anotações não constitui ferramenta obrigatória para a escrita. Há variadas práticas e ferramentas alternativas que cumprem ou substituem a função do caderno. Cada um encontra uma rotinas própria que, muitas vezes, não envolve o costume de anotar em papel.
Uma delas é a composição mental. Algumas pessoas conseguem trabalhar o texto na cabeça, antes de transpor para o suporte escrito, ainda que lidem com um milhão de ideias. Quando sentam para escrever, transferem toda a elocubração interna já na forma de uma história.
A voz foi sempre uma aliada de escritoras e escritores, possuindo uma longa história. Pode-se ditar as ideias para um programa de conversão de voz em texto. Ou, então, usar gravadores, até mesmo o celular, transformando as ideias primeiro em narrativas orais que, num momento posterior, converter-se-ão em um manuscrito.
Há ainda os críticos do uso de um caderno de anotações. Entre suas possíveis desvantagens, o hábito de anotar pode fragmentar o processo de construção de uma história, acumulando arquivos de elementos soltos.
Por certo, o que define a escritora ou o escritor não é nem o objeto nem o método aplicado para elaborar um texto, mas a prática regular da escrita e da atenção ao mundo. O caderno funciona como ferramenta desse processo, sendo uma opção entre tantas.
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