Quando o Extraordinário Acontece: Enchentes Extremas e o Fim da Estacionariedade

Imagem em estilo de xilogravura, quadrada e em preto e branco, mostrando uma barragem com vertedouro a fio d’água, sem colunas ou pilares visíveis. A água transborda em fluxo contínuo e intenso, formando ondas e redemoinhos sob um céu carregado de nuvens de chumbo e chuva diagonal. O fundo branco remete a uma folha de papel impressa, e o traço gráfico evoca a textura artesanal da gravura em madeira.
Ninguém viu, ninguém percebeu? O planeta novo está entre nós e exigirá uma mudança profunda em nosso modo de vida. Se continuarmos inertes, corremos grandes riscos.

A notícia chegou por meio do estado do Rio Grande do Sul. O estado recebeu chuvas extremas no mês de setembro de 2023. Segundo a empresa de meteorologia MetSul, acumulados de chuva registrados em estações de monitoramento do interior do estado bateram recordes.

Em Passo Fundo, observou-se o maior volume de chuvas desde o começo das medições em 1913, enquanto que em Cruz Alta foram as chuvas mais intensas desde o início do monitoramento em 1912.

Os extremos de chuvas, em conjunto com outros fatores, produziram um fato excepcional. As vazões do rio das Antas, onde se localizam duas usinas hidrelétricas, alcançaram níveis que se poderia dizer ficcionais. Corresponderam à vazão superior àquela denominada, em projetos de engenharia, decamilenar.

Análises centradas especificamente na bacia Taquari-Antas constataram que, entre 1981 e 2022, a região observou um aumento em eventos de chuva extrema. A excepcionalidade das enchentes combinou a altos volumes de precipitação concentrados em algumas horas, a topografia e o uso do solo.

Rios, vazão das águas e estatística

O termo “tempo de recorrência” é originário da estatística aplicada à hidrologia. Ele consiste em uma estimativa da probabilidade de um evento hidrológico - como uma enchente - ocorrer em um determinado intervalo de tempo.

No caso da vazão decamilenar, o tempo de recorrência de 1 em 10 000 anos significa que a magnitude da enchente observada é tão extrema que, estatisticamente, poderia ocorrer apenas uma vez a cada 10 000 anos. Ou seja: em qualquer ano, com uma chance de acontecer de 0,01%.

Projetar barragens e outras obras de infraestrutura hídrica envolve a consideração do tempo de recorrência para garantir que essas estruturas sejam capazes de lidar com eventos extremos sem comprometer a segurança. Uma barragem, por exemplo, deve ser projetada para suportar as maiores enchentes esperadas durante sua vida útil.

O país dispõe de um acervo crescente de séries hidrológicas. A Agência Nacional de Águas, ANA, disponibiliza séries históricas de níveis e vazões de milhares de estações da Rede Hidrometeorológica Nacional. Essa base de dados fundamenta projetos de engenharia e cálculos ligados a eventos extremos.

Para tornar isso mais compreensível, imagine uma chuva tão intensa que ocorresse apenas uma vez em 10 000 anos. Projetar uma barragem capaz de conter essa quantidade de água é vital para proteger vidas, propriedades e a integridade da própria barragem.

Cálculo da vazão decamilenar

Enquanto produto estatístico, a “vazão decamilenar” não existe como medida direta: ela precisa ser calculada a partir da coleta de dados hidrológicos, reunidos em séries temporais extensas. No caso de um rio, isso implica acompanhar, diariamente ao longo de décadas, o nível da água em determinados pontos - nas estações fluviométricas - a fim de se estabelecer a vazão da água.

No Brasil, de acordo com o inventário da Agência Nacional de Águas (ANA), há algumas estações com mais de cem anos de dados coletados. O monitoramento sistemático teve início na década de 1920, com vistas à exploração da energia hidráulica. Mas, via de regra, nas diversas regiões do país, as estações não possuem séries de dados tão longas.

Com as séries de dados em mãos, entra em cena a análise estatística. Diferentes métodos são empregados para modelar eventos extremos, ajustando-se volumes e distribuições ao longo do tempo conforme os dados da série histórica. Esse ajuste permite determinar a probabilidade de ocorrência de eventos de diferentes magnitudes.

A probabilidade de ocorrência determina o tempo de recorrência. Se pensarmos em termos simples, o tempo de recorrência é o inverso da probabilidade. Um evento com um tempo de recorrência de 1 em 10 mil anos, por exemplo, sugere que, em teoria, tal evento teria baixíssima probabilidade de ocorrer - 0,01% de chance.

Ressalte-se que os métodos até então se baseavam no princípio de que as condições do clima não se alterariam ao longo do tempo. Esse princípio de estacionariedade não se sustenta mais frente às modificações no sistema climático terrestre. Estudo dos rios brasileiros detectou um percentual relevante de estações de monitoramento exibindo tendência de alteração em vazões mínimas e máximas. Aquelas com aumento de extremos se concentravam no sul do país.

Mas encontrar outro método representa uma tarefa desafiadora. Uma análise metodológica recente sugere que, mesmo em locais onde se registra uma tendência positiva em eventos extremos, não se justificaria a adoção de um modelo não estacionário. As incertezas desse modelo dificultam o cálculo eficaz das precipitações máximas.

Vertedouros e vazões de 1 em 10 mil anos

Quando se fala em barragens, um componente fundamental para garantir a segurança é o vertedouro. Durante períodos de chuvas intensas, a quantidade de água que flui para uma barragem pode exceder sua capacidade de armazenamento. É aí que o vertedouro entra em ação.

Em termos simples, um vertedouro é como uma válvula de escape. Ele é projetado para liberar o excesso de água quando os níveis atingem patamares críticos, evitando sobrecargas que poderiam comprometer a integridade da estrutura. Além de aliviar a pressão sobre a barragem, reduz o risco de transbordamento e possíveis danos associados.

Mais do que uma medida de segurança, o vertedouro constitui uma peça-chave no planejamento hidrológico. Ele é projetado levando em consideração o volume de chuva esperado, a topografia da área e os dados de tempo de recorrência de eventos extremos. Essa abordagem proativa visa evitar situações críticas, protegendo as comunidades a jusante da barragem.

Para maximizar a segurança de barragens, usualmente se adota a estimativa estatística da vazão com tempo de recorrência de 1 em 10 000 anos como referência para o projeto de vertedouros.

Utilizando modelos climáticos acoplados a modelos hidrológicos, um estudo analisou o aumento da frequência e da intensidade de cheias extremas em cenários futuros até 2100 numa bacia hidrográfica do Ceará. Detectou alterações significativas. Por exemplo, a depender do cenário de aquecimento, a probabilidade de cheias de 1.000 anos poderia subir mais de dez vezes, comparado com as condições históricas. 

Talvez não seja exagero afirmar que, no Brasil, valores que chegassem próximos a uma vazão decamilenar jamais haviam sido registrados. Isto é, até setembro de 2023, porque o rio das Antas alcançou nível superior à essa vazão. Com o sistema climático terrestre se modificando, eventos semelhantes se repetirão. A engenharia deve desenvolver meios de incorporar cenários futuros e incertezas climáticas.

Quando a estatística se torna dado observado

O evento do rio das Antas põe a questão: o que fazer quando um cálculo estatístico - abstrato - de evento de mais extrema magnitude se transforma em dado observado - concreto - por uma estação de monitoramento?

Deve-se, primeiro, esclarecer o fato de que produtos estatísticos e dados observacionais são coisas distintas. O primeiro (estatística) só ganha existência a partir do segundo (dados). Dessa forma, não é correto afirmar que a vazão registrada na enchente do rio das Antas corresponda a uma vazão de 1 em 10 000 anos.

A série de dados fluviométricos do rio das Antas tem algumas décadas. Assim, a enchente registrada em setembro foi a maior enchente do registro histórico. O fato de ter sido observada comprometeu os cálculos estatísticos anteriores.

O sistema climático terrestre se encontra num momento de transição. De um estado de relativa estabilidade, ele agora se move, em função do desequilíbrio energético - está acumulando mais energia - para um novo estado de equilíbrio. Nesse processo, eventos extremos de seca e de chuva vão se tornando mais intensos e mais frequentes.

Pesquisa abordando a América do Sul e o Brasil apontou que, nas últimas quatro décadas, as alterações no no ciclo hidrológico do continente foram amplificadas pelas mudanças no uso do solo - desmatamento, práticas agrícolas e retirada de água. De todo o território, 42% está ficando mais seco, e 29% registrou acréscimo de extremos de seca e de chuva.

O ocorrido no rio das Antas foi um fato excepcional, um alerta para a necessidade de reavaliar a gestão de recursos hídricos e de riscos. A experiência do país com o rompimento de barragens - nas tragédias de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) - deixou duras lições.

Num sistema climático em mudança, para evitar que essas catástrofes humanas e ambientais se repitam, será imprescindível dispor de novas ferramentas de planejamento e governança.




Por Lino Breger
Agitador Cultural