O Nascimento de um Livro

Imagem em estilo de gravura, formato quadrado, sobre fundo de papel branco texturizado. Letras maiúsculas e minúsculas caem do topo da imagem em tamanhos decrescentes, como uma chuva tipográfica. Na parte inferior, essas letras se acumulam e se organizam para formar a silhueta de um livro aberto, cujas páginas e contornos são compostos inteiramente por letras pequenas. A composição evoca a ideia de linguagem tomando forma material.
Como nasce um livro? É pertinente afirmar que ele nasce da intenção de escrever. Às vezes, essa intenção se baseia, desde o princípio, na proposta de se criar uma obra.

E tudo corre sem percalços. O texto flui até se alcançar o ponto final - como diz a expressão popular, numa sentada só. Mas nem sempre se dá desse modo linear, contemplando início, meio e fim.

Interrupções

Há ocasiões em que a vontade de escrever tem o destino sob a influência do acaso. Talvez o texto pare, esgotando-se a ideia que o movia, sem uma conclusão.

E fica-se nisso mesmo: um manuscrito interrompido numa gaveta do quarto que, sabe-se lá, um dia se transforme em outra coisa - ou termine na lixeira. Casos assim povoam a história literária: Franz Kafka, por exemplo, deixou manuscritos inacabados que só foram publicados após sua morte, contrariando seus próprios pedidos. Um dos texto não concluídos de Charles Dickens deixou leitores e estudiosos debatendo possíveis desfechos.

Noutras situações, acumula-se uma quantidade razoável de páginas. Aquela ideia simples floresceu. Parece, então, que um livro está para nascer. Porém toca o telefone, reclamam de uma ausência nossa em terras distantes, simplesmente bate o cansaço ou irrompe uma briga com alguém próximo - a vida tem milhares de formas de se intrometer - e a escrita se suspende.

Frente à urgência do presente, o texto fica para depois de amanhã. Os manuscritos criados assim devem se guardar cuidadosamente. São como fetos ainda em desenvolvimento no útero de nossa imaginação. Possuem a promessa de um livro; basta reatarmos, no futuro, o esforço e o compromisso umbilicalmente.

Os coletores

Algumas pessoas se habituam a coletar sistematicamente acontecimentos cotidianos. Têm sempre à mão um instrumento de escrita - lápis, caneta, um caderno de bolso - ou utilizam papéis avulsos. Entre seus materiais preferidos estão embalagens de pão, cartas, panfletos do comércio e páginas de revistas em salão de cabeleireiro. Não raro, recortam os espaços vazios em pequenos retângulos e os preenchem de palavras.

Esses coletores modernos são herdeiros dos artífices de mosaicos da Antiguidade, que juntavam pequenas peças coloridas para criar painéis decorativos. Os textos produzidos em papéis avulsos funcionam como tesselas: fragmentos que, quando reunidos, compõem narrativas maiores.

Essa prática encontra paralelo em métodos contemporâneos de organização intelectual, como o Zettelkasten, que transforma notas breves em redes de ideias - procedimento adotado por pesquisadores, escritores e filósofos desde o século XX.

Se, por enquanto, não se pode reunir esses fragmentos num corpo único e coerente, convém guardá-los num arquivo seguro, para aproveitamento posterior.

O protesto do texto

É comum iniciar um texto com uma intenção específica - fosse apenas uma brincadeira, como elaborar um conto para zombar de um amigo. Depois de algum trabalho, porém, o texto protesta, ocupa um espaço maior que o previsto e exige outra forma.

Descobrimos, então, diante de nós, um livro em andamento que expõe o equívoco da proposta inicial e nos obriga a voltar ao começo, revisando, editando, escrevendo a história que realmente se quer contar. Muitas oficinas de criação literária discutem esse fenômeno: o momento em que o texto deixa de ser docilmente obediente e passa a parecer um organismo com demandas próprias.

É assim que obras nascem de propósitos acidentais. Memórias de Adriano, da escritora franco-belga Marguerite Yourcenar, por exemplo, evoluiu durante anos como fragmentos e esboços até adquirir, quase por insistência interna, a sua forma final.

Histórias imateriais

Textos também se fazem sem escrita. Criam-se oralmente, em histórias que inventamos e contamos para as crianças na hora de dormir. A cada noite, a narrativa se amplia: surge um novo personagem, um novo acontecimento, uma nova solução.

Criam-se igualmente em histórias que contamos a nós mesmos, no recesso de mentes ociosas - talvez em busca de conforto, talvez como fuga da realidade e de seus mecanismos de dominação. Quando tentamos fixar no papel esses textos imateriais, fazemos o gesto inaugural do escritor: converter o fluxo invisível em linguagem concreta.

Muitos estudos sobre tradição oral mostram que contar histórias repetidamente é, em si, uma forma de edição: cada repetição torna-se uma versão. Assim nascem mitos, lendas e memórias familiares.

Vertentes

Existem, portanto, infinitas trajetórias entre a ideia e o texto escrito. Elas pendem entre vertentes contrapostas: a do planejamento e da estrutura, e a do lúdico e espontâneo. Quem escreve inescapavelmente dará preponderância a uma delas, mas sempre recorrerá a ambas.

É célebre, por exemplo, a meticulosidade de Machado de Assis. Estudos críticos apontam que, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado desenvolveu um esquema preciso, com divisão rigorosa de capítulos e controle absoluto da voz narrativa.

Já Clarice Lispector representa o polo oposto: sua escrita flui de modo intuitivo, emocional, quase imediato. A Hora da Estrela, composta em um período de forte intensidade existencial, dá a impressão de que Macabéa conduz a pena da autora - exemplo clássico de obra que não nasce de planejamento rígido, mas de uma disponibilidade sensível para o imprevisível.

Outro caso interessante é Guimarães Rosa, cuja criação mescla as duas vertentes: por um lado, profunda pesquisa linguística e etnográfica; por outro, entrega ao experimentalismo e ao místico. Rosa estudava glossários, dicionários e línguas estrangeiras, mas também anotava frases ouvidas ao acaso em viagens pelo sertão.

Usando fontes

A primeira fonte do escritor é a própria linguagem, socialmente instituída. Cada pessoa carrega consigo um modo de falar, um sotaque, uma visão de mundo.

Além da língua, outras fontes são abundantes: experiências pessoais, observações do cotidiano, eventos históricos e sociais, mitos, lendas, tradições orais, disputas políticas, transformações culturais. A literatura de José Saramago, por exemplo, dialoga constantemente com história e filosofia; a de Toni Morrison emerge de memórias coletivas de comunidades afro-americanas; a de Jorge Luis Borges transita entre mitologia, erudição e invenção.

A lista não se esgota aí. Escrever histórias pode exigir pesquisa sobre temas, geografias, eventos, teorias, filosofias, questões técnicas, filologia - tudo aquilo que for necessário para constituir um universo narrativo crível.

A qualidade do escritor

De nada adiantam fontes se quem intenta escrever carece de humildade. Ao consultar vozes diversas encontraremos mundos que desconhecemos.

Um bom escritor deve ser capaz de se colocar no lugar dos outros e compreendê-los. Deve estar pronto a questionar suas próprias certezas. Precisa reconhecer a riqueza e a diversidade humanas e naturais, especialmente naquilo que lhe é diferente.

Afinal, se as pessoas e o mundo são diversos, o mesmo se espera de uma história que se pretende verossímil. A boa literatura é aquela que, ao mesmo tempo, acolhe e transforma a experiência humana - e nasce, sempre, desse encontro entre intenção, acaso, disciplina, caos e imaginação.




Por CF Scuo
Escritor