A automação do ato de escrever - Escritor CF Scuo
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A automação do ato de escrever


Atenção: boa parte do que você lê na rede mundial de computadores foi escrito com o auxílio de inteligência artificial. Mas isso não é novidade nenhuma.

Afinal de contas, a automação é uma das bases da sociedade capitalista. Desde a revolução industrial, máquinas tem sido empregadas para substituir parte do trabalho humano, a fim de se incrementar a produtividade.

Por que então tanto frenesi ao redor das máquinas atuais, que se pautam pelo mesmo princípio, apesar do nome mais sofisticado de inteligência artificial? Por que algumas vozes aventam que as máquinas imporão o apocalipse, como se estivéssemos num filme de cinema?

Sente-se o cheiro dum pudor de classe ferido pela nova fronteira conquistada pela automação. Afinal de contas, as camadas mediana e alta da sociedade sempre consideraram natural que a automação atingisse as camadas ocupadas pelo trabalho braçal.

Elas se reguardavam da insegurança trazida pela automação por meio da chancela do trabalho intelectual, considerado inacessível ao maquinário - e, deve-se deixar claro, aos controladores do maquinário. E mantiveram-se desatentas aos movimentos das empresas de tecnologia e das redes virtuais.

Tardiamente descobrem que, enfim, a automação veio abarcar também o trabalho intelectual. Talvez com velocidade e força mais brutais do que em períodos anteriores de substituição do trabalho.

Vinha vindo, vinha vindo e veio


Não foi algo do dia pra noite. Pelo contrário, o momento atual da inteligência artificial configura somente mais um degrau no trajeto da tecnologia nas últimas décadas.

Basta considerar o que se tornou a internet. Uma estrutura composta por algoritmos, robôs e sistemas inteligentes, estima-se que acima de 50% de seu tráfego seja automatizado. Mais de 70% das empresas estão usando algum tipo de automação em suas estratégias online.

Robôs são utilizados para buscas, interações em redes sociais, compras, para influenciar opiniões, atendimento ao cliente, seleção de candidatos a vagas de emprego, etc etc. O marketing tem sido amplamente automatizado, incluindo coleta e análise de dados, segmentação e personalização de mensagens, manipulação de conteúdos ou engajamento do público-alvo.

A inteligência artificial avança e preenche atualmente outro elo dessa cadeia, incrementando a produtividade na produção de conteúdos, tanto de material escrito quanto visual. No ambiente que viciosa e sistematicamente busca cativar a audiência - por meio de visualizações, de likes, de assinantes -, estamos no limiar duma explosão de conteúdos, qualitativamente duvidosos, na disputa entre competidores pelo espaço da internet.

Intelectual é o novo braçal


Uma forma de descrever a inteligência artificial é como se ela fosse a crista duma onda que se aproxima da praia. Ela chama a atenção porque está no alto e produz efeitos pirotécnicos, portanto nela se concentram os olhares.

Mas com isso os frequentadores da praia deixam de reparar, a princípio, que ela é a crista não de uma onda comum, mas de um tsunami. O tsunami do que se tornaram as empresas de tecnologia e a internet.

A principal descoberta será a mediocridade de boa parte do que se considera hoje trabalho intelectual. O ato de escrever, por si mesmo, era considerado até ontem exclusivamente intelectual. Tal premissa não se sustenta mais. Existem latifúndios e mais latifúndios de escrita burocrática disponíveis a serem ceifados pela automação.

Relatórios? A máquina produzirá. Planilhas? A máquina produzirá. Ofícios, comunicados, petições, liminares, rótulos, bulas, panfletos, artigos? A máquina produzirá. E toda uma classe que hoje vê no espelho o reflexo da distinção intelectual perderá o emprego.

Daí, talvez, uma ansiedade que alimenta o imaginário de um apocalipse iniciado por máquinas "inteligentes". Há, entretanto, outra fonte de ansiedade, uma fonte ainda intuída, que não encontrou uma exposição clara e objetiva.

Haverá uma influência mais profunda da inteligência artificial sobre as sociedades. Ela dissolverá as fronteiras entre o trabalho intelectual e o braçal. O que hoje se considera intelectual não o será mais no futuro breve.

Por outro lado, os materiais escritos gerados pela inteligência artificial perderão importância social. Qual o valor de um ensaio apresentado por um aluno que utilizou o auxílio de uma máquina? Se todos os alunos explorarem a inteligência artificial em seus trabalhos acadêmicos, como, então, avaliá-los? Será preciso criar novas formas.

O mundo do trabalho - que constitui a espinha dorsal das sociedades - sofrerá um abalo em sua estrutura atual. O mesmo efeito se verificará em todas áreas. Nós nos perguntaremos: qual o valor de um relatório, se a máquina é capaz de o elaborar? Em que ele ainda nos será útil, se não houver o crivo de uma pessoa por trás?

Outros modos de valorização do trabalho emergirão: escrever relatórios terá valor nenhum, enquanto analisar ou interpretar dados, cuja coleta e apresentação tenha sido automatizada, talvez se destaque.

Em vez do intelectual, importante será o trabalho interpessoal? A ciência fisicalista e mecanicista ficará ultrapassada, sendo substituída pela ciência da complexidade e as ciências humanas? Tais modos novos transformarão a organização social, cujas consequências se desdobrarão para todos os aspectos da vida humana.

No caso da literatura, área da criação humana sem propósito de uso, mas estético - contemplativo, de prazer ou fruição -, haverá interesse em narrativas criadas por inteligência artificial? Está em risco a indústria de best-sellers e suas fórmulas, simplesmente porque a máquina facilitará sua proliferação exponencial e, consequentemente, seu esvaziamento.

Por outro lado, ela barateará os produtos literários, em especial os processos ligados à sua produção - da escrita, passando pela revisão e formatação -, fortalecendo a tendência já observada de individualização e fragmentação.

Abrirá a possibilidade de mais pessoas se aventurarem na escrita e na produção de textos.  Levando-se essa possibilidade ao extremo, projeta-se um futuro em que a divisão entre autores e leitores começará a desaparecer. Criar-se-á um mercado em que leitores serão na grande maioria igualmente escritores, com o modelo das editoras atuais desaparecendo, pois também terão de se fundir com os demais elos da circulação, divulgação e consumo do livro.

Exagero? Pode ser. E pode ser que quase tudo o que vai escrito aqui tenha sido realizado não por uma pessoa, mas por uma máquina.




Por CF Scuo
Escritor

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