O Fim da Distinção Intelectual: Automação, Classe e Escrita

Ilustração em estilo gravura mostrando um pequeno robô com dezenas de braços organizando letras maiúsculas e minúsculas em linhas ordenadas. O robô está centralizado em uma composição tipográfica quadrada, com textura de impressão e traços detalhados.
Atenção: boa parte do que você lê na rede mundial de computadores foi escrito com o auxílio de modelos de linguagem. Mas isso não é novidade nenhuma - apenas o desdobramento recente de um processo antigo.

Afinal de contas, a automação é uma das bases da sociedade capitalista. Desde a Revolução Industrial, máquinas têm sido empregadas para substituir parte do trabalho humano, incrementando a produtividade. Estudos clássicos sobre automação e tarefas mostram que, desde o século XIX, todo avanço tecnológico reorganiza o trabalho ao deslocar funções que antes pertenciam exclusivamente às pessoas.

Por que, então, tanto frenesi em torno das máquinas atuais, que se pautam pelo mesmo princípio, apesar do nome mais sofisticado de modelos de linguagem? Por que algumas vozes aventam que elas imporão o apocalipse, como se estivéssemos num filme de cinema?

Sente-se o cheiro de um pudor de classe ferido pela nova fronteira conquistada pela automação. Afinal, as camadas médias e altas sempre consideraram natural que a automação atingisse o trabalho braçal.

Resguardavam-se da insegurança amparadas na distinção do trabalho intelectual - área que, acreditava-se, seria inacessível ao maquinário. Essa crença, porém, ignorou a velocidade com que as empresas de tecnologia expandiram sua capacidade de automatizar atividades cognitivas, em especial após a internet ter se tornado um ambiente densamente composto por algoritmos e fluxos automatizados.

Tardiamente descobrem que, enfim, a automação chegou também ao trabalho intelectual. Pesquisas recentes sobre automação cognitiva mostram exatamente isso: tarefas rotineiras, mesmo quando intelectuais, são as primeiras a serem incorporadas por sistemas computacionais.

Vinha vindo, vinha vindo e veio

Não foi algo do dia para a noite. O momento atual dos modelos de linguagem configura apenas mais um degrau numa longa escada tecnológica.

A internet, por exemplo, transformou-se radicalmente: relatórios setoriais de segurança digital mostram que quase metade de seu tráfego é automatizado, fruto de bots, indexadores e sistemas de coleta massiva de dados. Paralelamente, levantamentos corporativos indicam que mais de dois terços das empresas utilizam ferramentas de automação.

Robôs são utilizados para buscas, interações em redes sociais, compras, formação de opinião, atendimento ao consumidor, seleção de candidatos, personalização de propaganda. E agora, os modelos de linguagem entram como mais um elo dessa cadeia, ampliando drasticamente a produtividade na produção de conteúdos escritos e visuais.

Nesse ambiente em que tudo é otimizado para captar atenção - visualizações, curtidas, assinaturas - estamos às portas de uma explosão de conteúdos de qualidade incerta, multiplicados numa disputa feroz por espaço digital. Pesquisas sobre produção textual assistida por modelos de linguagem já documentam tanto os ganhos de velocidade quanto o aumento de ruído e redundância.

Intelectual é o novo braçal

Uma forma de descrever os modelos de linguagem é como uma crista de onda que se aproxima da praia: atrai olhares com seu brilho superficial. Mas o que se aproxima não é uma onda comum, e sim um tsunami - aquele formado pela transformação das empresas de tecnologia e da infraestrutura digital que permeia todas as esferas sociais.

A principal descoberta, dolorosa para alguns, será a mediocridade de grande parte do que se considera trabalho intelectual. O ato de escrever, ontem projetado como atividade nobre, será revelado, em inúmeros contextos, como uma tarefa rotineira. E tarefas rotineiras são, pela própria lógica da automação, as primeiras a serem substituídas.

Relatórios? A máquina produzirá. Planilhas? A máquina produzirá. Ofícios, comunicados, petições, liminares, rótulos, bulas, panfletos, artigos? A máquina produzirá. E toda uma classe que se via como detentora de distinção intelectual descobrirá que sua distinção era, em grande parte, somente funcional.

A automação eliminará atividades repetitivas, gerando ganhos de produtividade. Por consequência, cairá a oferta de emprego. Não surpreende que as empresas por trás dos modelos de linguagem alimentem o imaginário da emergência de uma inteligência artificial capaz de trazer o apocalipse.

Há outra ansiedade mais profunda: a dissolução das fronteiras entre trabalho intelectual e trabalho braçal. Atividades hoje vistas como intelectuais deixarão de sê-lo. Ao mesmo tempo, materiais produzidos por modelos de linguagem perderão valor social à medida que se tornarem abundantes. Diante da ampla disponibilidade desses sistemas, será inevitável reformular métodos de avaliação.

Afinal, qual o valor de um ensaio elaborado com auxílio de uma máquina? A tendência é, por exemplo, que escolas e universidades migrem para avaliações processuais, orais e interpretativas. O mundo do trabalho, espinha dorsal da sociedade, sofrerá abalos profundos. Surgirá a pergunta inevitável: qual o valor de um relatório se a máquina o produz? Em que ele ainda será útil sem o crivo humano? O valor se deslocará da produção para a interpretação, do escrever para o analisar.

Outros modos de valorização emergirão. Escrever relatórios pode deixar de ser uma habilidade central; interpretar dados, contextualizar informações, gerar sínteses críticas e conduzir trabalhos interpessoais ganharão protagonismo. Talvez se realize o cenário em que a ciência mecanicista, dominada pela automação, perde espaço para abordagens complexas, interdisciplinares e humanas.

Na literatura, domínio da criação estética sem propósito utilitário, as tensões serão ainda mais visíveis. Haverá interesse em narrativas produzidas por modelos de linguagem? É possível que a indústria dos best-sellers, baseada em fórmulas narrativas repetitivas, entre em crise, justamente porque tais fórmulas se tornam trivialmente automatizáveis. Os processos da indústria editorial atravessam mudanças profundas nas etapas de produção, revisão e promoção.

Além de facilitar a escrita, a automação barateará o processo entre o manuscrito e o livro. Isso pode reforçar tendências já observadas: fragmentação, individualização, multiplicação de vozes. Modelos de linguagem tornarão acessível a qualquer um a autoria de uma obra publicada, dissolvendo a fronteira entre leitores e autores.

Exagero? Talvez.

E talvez quase tudo o que vai escrito aqui tenha sido realizado não por uma pessoa, mas por uma máquina.




Por CF Scuo
Escritor