Essa explosão poética na internet - que inclui desde blogs e plataformas de auto publicação até fenômenos como poesia de Instagram - reacendeu também a discussão sobre critérios estéticos. O que entendemos por poesia e como avaliar sua qualidade num contexto tão diverso?
Beleza, profundidade semântica, densidade imagética, ritmo, controle formal e repercussão no leitor: a “qualidade” poética resulta da combinação desses e outros elementos. Depende, ao mesmo tempo, da experiência que o leitor extrai do texto. A estética poética é uma emergência relacional, ela surge no encontro entre o texto (ou a performance) e um público que lê/ouve/assiste. Em termos teóricos, isso aproxima-nos da noção transacional de leitura, segundo a qual o significado é produzido na interação entre leitor e texto.
Por Ana Clara Melo
Poesia como poesia
A poesia existe porque, em praticamente todas as tradições culturais, existiu e ainda existe uma modalidade distinta de produção verbal que se diferencia da prosa por certas características. Entre elas, o ritmo, a formulação memorizável, a musicalidade, o uso concentrado de imagens e a construção de uma identidade coletiva.
Na tradição europeia, a definição de poesia foi formalizada por pensadores como Aristóteles, que a relacionou com a mimesis (imitação) e formas específicas (épico, lírico, dramático). Mas essa definição corresponde sobretudo a uma tradição particular e não esgota as formas poéticas existentes. Para uma visão mais abrangente é preciso somar à perspectiva grega o estudo das práticas dos diversos povos ao redor do mundo.
A poesia atua por recursos específicos. Inclui compressão semântica - condensação de sentido -, imagens, figuras de linguagem e uma atenção ao ritmo, seja este obtido por métricas formais, seja por cadências orais. Em muitas tradições orais, técnicas repetitivas, fórmulas e estruturas métricas funcionavam como dispositivos mnemônicos e como garantias de transmissão fiel. Esses recursos são parte do ofício poético, que, como outros ofícios, possui técnica e tradição.
Ao mesmo tempo, a intensidade do ritmo varia. Alguns poemas dependem de métrica e rima rígidas; outros utilizam o verso livre, o fluxo prosódico ou a musicalidade associada à performance (canção, rap, canto ritual). A presença ou ausência de métrica formal não determina por si só a “poeticidade”. O que importa é o modo como a linguagem é trabalhada para produzir efeitos estéticos, mnêmicos e sociais. O último ponto constitui um elemento imprescindível, pois a técnica poética se aplica a fins comunicativos e coletivos.
Com a ruptura modernista e a ampliação das funções da poesia, o papel social do poeta se transformou. Se antes o poeta era, sobretudo, um depositário da tradição e um artífice técnico da forma, o cenário contemporâneo demanda que ele atue também como pesquisador, crítico e intérprete da tradição. A liberdade estética conquistada no século XX não elimina a necessidade de rigor. Pelo contrário, desloca o trabalho poético para um horizonte em que pesquisar formas, compreender genealogias, analisar criticamente procedimentos e explorar novos materiais é parte constitutiva do ofício.
O poeta se insere, assim, numa longa cadeia de práticas humanas - orais, escritas, performativas. Sua função social inclui dialogar com essa herança, reconfigurá-la, criticá-la e ampliá-la. Num mundo saturado de discursos, imagens e textos, o poeta cumpre um papel de organizador da linguagem, capaz de revelar ritmos, tensões e significados invisíveis na comunicação cotidiana, contribuindo para a vida coletiva tanto pela invenção estética quanto pela reflexão crítica.
A poesia em expansão
A ampliação do número de poetas e do público é um fenômeno positivo do ponto de vista democrático da cultura. Amplia-se a pluralidade de vozes e a possibilidade de expressão. Contudo, a maior quantidade de produção exige também critérios críticos para avaliar a qualidade, a fim de se distinguir trabalhos com maior densidade expressiva, originalidade ou domínio do ofício. Estudos recentes sobre poéticas digitais discutem justamente essas tensões entre alcance massivo e estética.
Beleza, profundidade semântica, densidade imagética, ritmo, controle formal e repercussão no leitor: a “qualidade” poética resulta da combinação desses e outros elementos. Depende, ao mesmo tempo, da experiência que o leitor extrai do texto. A estética poética é uma emergência relacional, ela surge no encontro entre o texto (ou a performance) e um público que lê/ouve/assiste. Em termos teóricos, isso aproxima-nos da noção transacional de leitura, segundo a qual o significado é produzido na interação entre leitor e texto.
Como um chefe de cozinha que prepara um prato para paladares alheios, o poeta elabora sinais que só ganham vida plena quando recebidos por outras pessoas. Isso não diminui o elemento pessoal do poema. Ao contrário, grande parte do trabalho do poeta é transformar o íntimo, sua experiência particular, em uma linguagem que permita reconhecimento e ressonância coletiva. Ao fazê-lo, o autor deve submeter seu próprio material a uma rigorosa autoavaliação estética e ética.
Fernando Pessoa resume com agudeza essa ambivalência do íntimo e da representação quando diz que “o poeta é um fingidor”. A criação poética envolve uma mediação entre sentimento vivido e sentimento representado, de modo que a obra, embora pessoal, tende a falar de algo mais universal ou, pelo menos, a buscar reconhecimento em outrem. A dimensão inventiva - o “fingir” - é, portanto, um dos mecanismos que permitem ao poema transitar do privado para o público.
Além disso, ao considerar o lugar social da poesia, não podemos ignorar as tradições orais e performativas, em que o poema funciona como arquivo de memória coletiva, instrumento legal, crítica social e vínculo identitário. Contextos assim nos lembram que a poesia não se trata de um produto de consumo individual, antes é um ato social e ritual. A poesia não cabe no molde do individualismo.
O ambiente digital pode ser interpretado como um novo campo de performance e oralidade, mas com graves limitações, em especial o viés individualista e os interesses comerciais introduzidos por algoritmos, instantaneidade, ou economia da atenção. Nesse ambiente, uma postura crítica deve buscar práticas que valorizem o ofício, a riqueza semântica e a capacidade do texto/da performance de tocar e formar coletivamente.
Poetas e quase poetas
A poesia constitui uma atividade humana criativa, socialmente situada, vinculada à imaginação, à memória comum, à crítica e ao trabalho técnico sobre a linguagem. No caso de sua manifestação escrita, voltada à leitura individual, pode-se distinguir entre quem apenas escreve versos e quem efetivamente se torna poeta. A transição não depende de fama, publicação ou prestígio, mas do atendimento aos requisitos do papel social de poeta.
A começar pela linguagem, não no sentido de seguir regras fixas, mas no sentido mais profundo: saber condensar significados, manejar ritmo, produzir imagens que ultrapassem a experiência particular e possam ressoar no coletivo. A linguagem é a matéria de trabalho do poeta, implicando pesquisa, experimentação, reescrita, inovação.
O cumprimento do ofício poético inclui o conhecimento e crítica da tradição, a participação ativa em meios de circulação da palavra poética e a busca de diálogo com o outro. O papel de poeta se dá no interior de um fluxo histórico de práticas humanas, algo maior e mais relevante do que a mera subjetividade.
Sem ativar esses elementos estruturantes, ainda é possível escrever poesia, porém limitada à uma voz individual. Esses textos, válidos como expressão humana, não realizam a passagem para o campo da poesia enquanto ofício. Sem cuidado crítico e estético, a escrita permanece no nível do registro imediato, aquém do horizonte coletivo que caracteriza a atividade poética. Escrever versos é um gesto, ser poeta, um trabalho orientado por normas sociais e históricas.
Em sua manifestação escrita, voltada à leitura individual, o fazer poético combina domínio técnico, imaginação criadora, crítica, função social, circulação e diálogo com o outro. Para exercê-lo plenamente, fundamental escapar à prisão do individualismo, cujas grades tomaram, no mundo contemporâneo, a forma de telas brilhantes.
Crítica Literária
