Democracia em tempos de mídias sociais - Escritor CF Scuo
Lino BregerOpiniões acerca do mundo

Democracia em tempos de mídias sociais

Ilustração da Acropolis em Atenas, para o post intitulado 'Democracia em tempos de mídias sociais'
As empresas de tecnologia ganharam ares de divindades. Elas estão onipresentes na vida cotidiana das pessoas. O local de suas sedes corresponde à versão moderna do Monte Olímpio, morada dos deuses gregos.

Estão dotadas do poder de controle sobre as plataformas e serviços que milhares de pessoas utilizam diariamente para se comunicar, se informar ou trabalhar.

Ao manipular os fluxos de informação através de algoritmos, elas direcionam nossos pensamentos, comportamentos e percepções. Fariam inveja a Zeus - se ele ainda estivesse vivo.

Que mundo vemos para criar uma visão de mundo?


Uma das características das sociedades atuais é fazer a vida atribulada. Deve-se trabalhar de oitos às dezoito horas, ter uma família, talvez criar os filhos, cuidar da própria saúde... Mediante tantos afazeres, que tempo sobra para se envolver com questões menos imediatas, que tratem de outros lugares, outros modos de vida, outras necessidades, ou então que sejam comuns e digam respeito ao coletivo - o condomínio do prédio, o bairro, a cidade?

Para viver essa vida atribulada, o mais fundamental consiste na cooperação com os nossos semelhantes, demais integrantes da sociedade da qual somos parte. Alguns plantam e colhem o alimento no campo para nós, outros os transportam para a cidade, onde mais pessoas cuidam de os selecionar e levar ao sacolão em que os compramos.

O mesmo acontece para nos informarmos a respeito da cidade, da economia ou do Japão. Não dá para pegar um avião e ir informar a si mesmo sobre o que se passa no Japão - além da passagem custar os olhos da cara, da demora em se vencer a distância e do desafio de se aprender japonês, por onde começar, quando lá chegássemos?

É preciso depender da cooperação de outras pessoas. Que elas pesquisem e apurem fatos, relatem notícias, produzam meios para comunicá-las de forma que cheguem até nós. Depois que as sociedades se globalizaram por causa do capitalismo, essa demanda de informação criou o jornalismo e os meios de comunicação de massa.

A partir dessa rede de pessoas, normas e instituições se geravam informações e retratos do mundo ao nosso redor, que juntávamos à nossa experiência individual para compor nossa visão de mundo. Essa era do jornalismo, dos jornalzões e telejornais - de um passado não muito distante - tinha lá os seus problemas.

O quarto poder


Antes da produzir informação, há sempre escolhas a serem feitas por profissionais e empresas do ramo: o que, como e quando informar um fato. Tais escolhas derivam das opções editoriais do veículo de comunicação e contaminam o material jornalístico com uma perspectiva particular, um viés.

Teoricamente, o jornalista conta com inúmeros procedimentos para minimizar o viés - seu e do veículo onde atua. Mas nem sempre funcionam. Acontecem casos nos quais interesses do jornalista, do veículo ou de terceiros moldam a forma de se produzir a informação sem que o público leitor esteja ciente.

O maior ponto fraco das empresas do setor era a necessidade de ganhar dinheiro e lucrar com o trabalho informativo. Ficavam vulneráveis à influência de empresas ou instituições que representavam fontes de dinheiro - por meio da publicidade e propaganda ou outros.

Criava-se uma relação entre poderes, íntima, privativa e nada transparente: de um lado quem tinha o poder de informar o público/ audiência, de outro quem tinha o poder econômico ou político. Funcionava (e funciona) assim em qualquer lugar do mundo, com maior ou menor intensidade; o Brasil é exemplo do segundo caso.

Não à toa a imprensa ganhou a alcunha de quarto poder, tomando como referência os outros três poderes do estado democrático - o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Produzindo e editando as informações, a imprensa exercia (ainda exerce, mas agora com menor ênfase) papel central na formação de nossa visão de mundo.

Sob a praga de seus vícios pecuniários, a era do jornalismo, dos jornalzões e telejornais estava ruim. Ninguém prestou atenção que poderia piorar.

O meio é a mensagem, você, o produto


O poder dos grandes veículos de comunicação tradicional dependia da produção consistente de conteúdo jornalístico, do controle de um sistema de instituições e materiais para imprimir, transmitir e distribuir esse conteúdo, de uma boa reputação e da formação de um público leitor ou de uma audiência.

As empresas de tecnologia deram um pulo feito o gato, desestabilizando o ambiente no qual operava a imprensa. Ao abrir mão de elas mesmas produzirem conteúdo, as empresas focaram no meio - um sistema inovador que reunia criação, transmissão e distribuição de conteúdo. E na ponta desse pulo, lançaram um anzol com isca.

Pense em você mesmo. Com o apoio de aparelhos eletrônicos, você produz fotografias, vídeos, áudios. Compartilha-os pelo consumo dos recursos digitais oferecidos pelos aplicativos e plataformas das empresas de tecnologia.

Ou tome-se um dos novos trabalhos criados na onda das mídias sociais, a de influenciador digital. Pessoas - ou agências - geram entretenimento em plataformas e aplicativos com fins de formar sua própria, micro ou macro, audiência. Recebem remuneração de acordo com a cota de visualizações, de seguidores, etc, mergulhados até o pescoço numa corrida fratricida pela atenção do usuário.

Ao abrir o sistema para qualquer um produzir e compartilhar conteúdos, as empresas subverteram os papéis que antes suportavam os veículos de comunicação. O público leitor, a audiência se converteu também em usuário. Aí se come, sem reparar, a isca lançada, prendendo-nos em seus sistemas tecnológicos.

O interesse foi criar sistemas de comunicação que dominassem públicos leitores e audiências. Para as empresas de tecnologia, pouco importa o conteúdo: cativado, o usuário é o produto. Imagine se a Rede Globo tivesse o domínio sobre você e seu hábito de assistir televisão. Os executivos da emissora estourariam champanhe, gritando pelas janelas; "Que se dane a audiência do IBOPE!".

Pois é, quem está tomando o champanhe, aos gritos de "Tá tudo dominado!", são os executivos e acionistas das empresas de tecnologia. 

Divino algoritmo viciante


O diabo tem sempre mais de um truque na manga. Na caça ao domínio de um volume cada vez maior de 'usuários', as empresas de tecnologia utilizaram estudos da psicologia comportamental para tornarem seus produtos mais viciantes. Feito uma droga.

Por trás do visual e dos recursos de aplicativos e plataformas estão anos de pesquisa psicológica. Recompensas variáveis, gatilhos emocionais, feedback imediato, notificações, entre outros, sedimentam no usuário reações que o impulsionem a continuar ou, se ausente, a sempre retornar (e você ainda considerando a maconha como o grande problema social). 

Além do emprego sofisticado de estratégias psicológicas, outro modo de manipulação que se esconde nos bastidores de aplicativos e plataformas são os algoritmos. As empresas de tecnologia podem não produzir conteúdo para seus produtos, como mídias sociais, mas elas certamente não abrem mão da edição do conteúdo que neles circula.

Os algoritmos operam em duas frentes. Eles ditam a distribuição e o nível de exposição de conteúdos para os usuários. E eles garimpam e filtram a grande quantidade de dados disponíveis sobre os usuários: pessoais, financeiros e de hábitos de consumo.

A distribuição de conteúdo obedece ao perfil do usuário gerado a partir dos dados coletados. Um reforça o outro até que a atenção do usuário tenha sido emoldurada dentro de uma bolha, que se retroalimenta.

Daí muitos dos males que atualmente afligem as democracias pelo planeta.

Tem saída?


Não importa a enrascada em que nos metemos, haverá uma saída para qualquer problema humano. A dificuldade é que às vezes ela esbarra em enormes obstáculos.

A imprensa perdeu em parte a relevância. O lugar que ocupava enquanto quarto poder foi tomado pelas empresas de tecnologia que resistirão à mudanças de curso.

Recomendações para trazer transparência à comunicação de plataformas e aplicativos inclui a identificação obrigatória dos produtores de conteúdo. Em um jornal, está claro que os artigos jornalístico são produzidos pela empresa jornalística e seu corpo de jornalistas - usualmente estão assinados. O mesmo poderia valer para conteúdos digitais - vídeos, imagens e áudios.

Pode-se impor responsabilizações civis e criminais às empresas quanto aos abusos praticados através das plataformas e serviços oferecidos por elas. Com isso, ficariam compelidas a rever e corrigir práticas econômicas que lucram com a desinformação e a disseminação de mentiras.

Outra alternativa seria reproduzir o modelo de empresas públicas de comunicação, como a BBC inglesa, no setor tecnológico. Caberia a tais instituições públicas de tecnologia criar e gerir, sem fins lucrativos, plataformas, aplicativos e serviços para usufruto seguro das pessoas e sociedades.

É preciso correr com as mudanças de curso. Se o que estava ruim piorou, o avanço da inteligência artificial ameaça fazer, em breve, um estrago sem precedentes.




Por Lino Breger
Agitador Cultural

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