O Quarto Poder Digital

Ilustração em estilo gravura mostrando uma figura robótica gigante manipulando inúmeros prédios de uma cidade como marionetes, sobre fundo branco que remete a papel entalhado.
As empresas de tecnologia ganharam ares de divindade, pois se tornaram onipresentes na vida cotidiana. Suas sedes correspondem a uma versão moderna do Monte Olímpio - a morada dos deuses gregos. Acumulam poder sobre a distribuição de recursos, atenção e informação na sociedade. 

Elas são donas de infraestruturas tecnológicas, de plataformas e serviços que milhões de pessoas utilizam diariamente para comunicar-se, informar-se e trabalhar. Colhem grandes volumes de dados comportamentais, de modo a convertê-los em previsões e instrumentos de modulação de comportamento. Esse novo arranjo econômico e político tem sido descrito como “capitalismo de vigilância”.

Ao manipular fluxos de informação por meio de algoritmos, essas empresas influenciam quais notícias, opiniões e conteúdos alcançam cada utilizador. Portanto, condicionam percepções, prioridades e atitudes públicas. Pesquisas mostram que a personalização algorítmica molda o ecossistema informativo em que os cidadãos se movem. O efeito prático é a formação de bolhas de reforço e câmaras de eco.

Imprensa e opinião pública

Uma característica marcante das sociedades contemporâneas é o ritmo atribulado da vida. Trabalha-se das oito às dezoito, cuida-se da família, acompanha-se a educação dos filhos, vela-se pela própria saúde - tudo isso compete por um tempo cotidiano escasso.

Em face de múltiplas obrigações, sobra pouco tempo para empenho em questões não imediatas, aquelas que dizem respeito a espaços coletivos (o condomínio, o bairro, a cidade), a outras culturas ou a problemas globais. Essa limitação temporal altera a forma como as pessoas procuram e assimilam informação.

Para organizar e manter a vida cotidiana, somos dependentes da cooperação social: agricultores produzem alimentos; transportadores os levam às cidades; trabalhadores nos pontos de venda se encarregam da seleção e da distribuição. Do mesmo modo, para saber o que se passa num país distante - por exemplo, no Japão - dificilmente cada pessoa pode deslocar-se até lá.

Dependemos de profissionais que investigam, verificam, relatam e traduzem eventos para públicos distantes. Esse conjunto de profissionais, normas e instituições - o jornalismo e os meios de comunicação de massa - nasceu para suprir essa necessidade de informação socialmente distribuída.

Durante décadas, a imprensa organizada em jornais impressos ou grandes telejornais foi a principal camada institucional que produzia retratos públicos do mundo. Ela combinava reportagem, edição e verificação de fatos para produzir narrativas, utilizadas por cidadãos e autoridades como base para decisões.

Esse ecossistema informativo tinha problemas bem conhecidos, como, por exemplo, a concentração de propriedade na mão de pessoas ou grupos, vieses editoriais ou a dependência de receitas publicitárias. Ainda assim, a imprensa desempenhava papel central na formação da opinião pública.

O quarto poder

Antes de produzir informação, profissionais e empresas sempre fazem escolhas sobre o que noticiar, como e quando. Essas escolhas derivam de linhas editoriais, recursos e pressões externas - e introduzem vieses inevitáveis na cobertura.

Em teoria, há procedimentos jornalísticos (checagem de fontes, contraditório, separação entre opinião e notícia) que minimizam parcialidades. Na prática, eles nem sempre são eficazes, sobretudo quando interesses econômicos ou políticos pressionam pela narrativa.

Historicamente, um ponto fraco do jornalismo corporativo foi a sua dependência da receita publicitária e de mecanismos de mercado. Ficava vulnerável à influência econômica, por meio da publicidade e propaganda, de anunciantes e outros atores poderosos.

Criava-se, assim, uma relação íntima e muitas vezes opaca entre poderes. De um lado, quem tinha o poder de informar o público/audiência, de outro, quem tinha o poder econômico ou político - uma dinâmica presente com maior ou menor intensidade em diferentes países. O Brasil sempre foi um exemplo da maior intensidade dessa relação.

A centralidade da imprensa na vida social resultou no reconhecimento de seu papel como o quarto poder, tomando como referência os outros três poderes do estado democrático - o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Produzindo, editando e circulando informações, a imprensa exercia (ainda exerce, mas agora com menor ênfase) grande influência na formação da opinião pública.

Sob a praga de seus vícios pecuniários, a era do jornalismo, dos jornalzões e telejornais estava ruim. Ninguém prestou atenção que poderia piorar.

O meio é a mensagem, o usuário, o produto

O poder dos grandes veículos tradicionais assentava em vários elementos: produção consistente de conteúdo jornalístico, controle de um sistema de impressão, transmissão e distribuição de conteúdo, uma boa reputação e a formação de um público leitor ou de uma audiência estável.

As empresas de tecnologia mudaram o tabuleiro, desestabilizando o ambiente no qual operava a imprensa. Ao abrir mão de elas mesmas produzirem conteúdo, as empresas focaram no meio, investindo em sistemas que articulam criação, distribuição e monetização do conteúdo. Crucialmente, elaboraram mecanismos que transformam a atenção do usuário em receita.

Ao abrir as plataformas para a produção de informações por qualquer usuário, as empresas de tecnologia inverteram os papéis até então institucionalizados no sistema da imprensa. A audiência deixou de ser apenas consumidora, interagindo com as plataformas por meio também da produção ou compartilhamento de conteúdos ou de sua resposta individual e imediata ao conteúdo consumido.

Nesse processo, as empresas de tecnologia tornaram o engajamento da audiência como produto a ser comercializado junto a anunciantes. Para elas, pouco importa o conteúdo, desde que se mantenha o usuário cativado. E realizam isso com um nível de manipulação sequer imaginado pelos veículos da imprensa tradicional.

Tome-se o exemplo dos “influenciadores” digitais. Sua remuneração se baseia em métricas - como visualizações, tempo de visualização, interações - criadas, medidas e exploradas pelas plataformas. O foco das métricas gira em torno da atenção dispensada pelo usuário ao conteúdo apresentado.

Ao mesmo tempo, a plataforma utiliza os seus mecanismos de recomendação para amplificar conteúdos que mantêm a atenção dos utilizadores. Ou seja, aqueles que apresentem o melhor desempenho em suas métricas, sem qualquer consideração sobre a qualidade informativa ou a utilidade social.

Tecnologia viciante

Na corrida pela atenção, as empresas utilizaram achados da psicologia comportamental e design persuasivo para tornar produtos mais envolventes - em inglês, chamado de “hook model”. Recompensas variáveis, gatilhos emocionais, feedback imediato, notificações, entre outros, sedimentam no usuário reações que o impulsionem a continuar ou, se ausente, a sempre retornar. 

Além do emprego sofisticado de estratégias psicológicas, outro modo de manipulação que se esconde nos bastidores de aplicativos e plataformas são os algoritmos. As empresas de tecnologia podem não produzir conteúdo para seus produtos, mas elas certamente não abrem mão da manipulação do que neles circula.

Os algoritmos ditam a distribuição e o nível de exposição de conteúdos para os usuários. Eles definem que conteúdos são distribuídos e com que intensidade. Do lado do usuário, os algoritmos garimpam dados pessoais, financeiros e de hábitos de consumo, distribuindo o conteúdo a partir desse perfil, personalizando fluxos e reforçando preferências existentes.

Há quem compare esses mecanismos a substâncias viciantes, pois eles possuem efeitos concretos de captura da atenção individual. Por trás dos produtos tecnológicos, existe a intencionalidade das companhias em gerar comportamentos viciantes - semelhantes aqueles dos jogos de azar -, o que demanda a discussão de limites éticos e regulatórios.

Beco sem saída

A imprensa tradicional perdeu parte significativa de sua relevância como mediadora entre fatos e público. A emergência de plataformas digitais ocupou o espaço de circulação de notícias, modificando seu fluxo segundo lógicas de engajamento. Uma parcela crescente da população obtém informações prioritariamente em redes sociais, agregadores e mecanismos de busca.

Nesse ambiente, conteúdos apresentados ao usuário não derivam do trabalho editorial de profissionais que selecionam, apuram e hierarquizam fatos. Pelo contrário, são resultados de processos automatizados cujo critério fundamental é maximizar atenção, permanência e receita publicitária.

Esse deslocamento de poder informacional exige respostas públicas e institucionais que reconstruam condições mínimas de transparência e responsabilização. A comunicação social, para operar em benefício da coletividade, depende de clareza sobre a origem e a autoria do conteúdo.

É urgente a promoção de leis e regulamentos da atuação das empresas de tecnologia, incluindo responsabilização civil e penal, impondo mecanismos que eliminem opacidades introduzidas por algoritmos e práticas empresariais que se beneficiam da desinformação.

Ao mesmo tempo, torna-se pertinente considerar alternativas ao monopólio privado, entre elas a instituição de modelos públicos ou sem fins lucrativos que ofereçam infraestrutura digital orientada pelo interesse coletivo. Tome-se o exemplo do papel que empresas públicas de comunicação desempenham em diversos países.

A crise do jornalismo não eliminou sua importância, apenas reduziu seu peso relativo num ecossistema tomado por atores cujo negócio não é informar, mas capturar atenção. Se a imprensa tradicional apresentava problemas, o cenário atual os ampliou significativamente.

Combinando incentivos econômicos pouco transparentes, personalização extrema e ausência de mediação editorial, o ambiente digital promove a desinformação, a polarização e a erosão do debate público. O modelo atual de negócios das empresas de tecnologia põe em risco o funcionamento democrático e minimamente racional das sociedades. 

Com a rápida expansão de modelos de linguagem e audiovisuais, automatizando inúmeras etapas da produção de conteúdo, a destruição do espaço de debate público está se agravando. Os modelos facilitam manipulações e a  produção de conteúdo enganoso. Obscurecem ainda a possibilidade de reconhecer a autenticidade de uma informação.

Cada vez mais, as empresas encurralam sociedades e governos num beco sem saída. O desafio consiste em promover formas de enfrentá-las num ambiente informativo comprometido e fragmentado. É um trabalho urgente, pois o custo de nada fazer é permitir que o que já estava ruim se transforme em algo significativamente pior.




Por Lino Breger
Agitador Cultural