A escrita e o ato de escrever foram inventados. Talvez pela primeira vez há cerca de 12 mil anos atrás, como pictogramas, imagens inscritas em objetos e que transmitiam um significado - um pouco como os hieroglifos. Depois seriam reinventados pelos sumérios, que desenvolveram a escrita cuneiforme, inaugurando o longo caminho culminando na escrita a que estamos familiarizados.
O ato de escrever, o ato de ler, as línguas, os suportes materiais, todos esses elementos foram inventados e modificados ao longo do tempo. A literatura que conhecemos hoje tem suas origens no século dezoito e, com ela, surgiram também a figura moderna do autor ou autora, dos leitores e leitoras, e a comercialização de produtos literários.
Essa constatação serve a quem pretende se aventurar no ato de escrever. Ninguém se transforma em um autor ou autora de forma arbitrária, ao acaso. Esse papel, como toda invenção humana, apresenta uma trajetória histórica e, a cada período, segue determinados requisitos.
Sem uma clara compreensão disso, qualquer pretensão à escrita corre sérios riscos de fracassar no marasmo, na ordinariedade ou na irrelevância.
A transformação do autor: dos românticos aos modernistas
O papel da autoria começa a mudar na época do romantismo. É introduzida a noção de genialidade, descrevendo o autor ou autora como alguém de dom excepcional, retirando de seu íntimo contribuições à tradição literária.
Realizava-se o primeiro passo à maior autonomia individual, retratada pelo romantismo, contudo, em cores bastante fantasiosas. As sociedades guardavam um grande conservadorismo de costumes sociais provenientes da Idade Média. A noção de individualidade estava se desenvolvendo.
E apesar de advogar por essa ideia abstrata da genialidade individual, os românticos prezavam regras e práticas coletivas do fazer literário, originadas da tradição, como a forma em verso e a temática.
O maior desenvolvimento social e material das sociedades aprofundaria a noção de indivíduo, ampliando sua capacidade de ação particular frente às normas e regras coletivas. Na literatura, a expansão da produção, do comércio e do consumo do livro - em especial a formação de uma massa de leitores -, acompanhariam a reinvenção da figura do autor ou autora.
A relação de quem escreve com a tradição se alteraria: em vez da excelência técnica - valor em parte preservado na ideia de gênio do romantismo -, o modernismo enfatizará a originalidade.
Essa tendência se manifestou no Brasil. Para os participantes do movimento modernista do início do século XX, o autor ou autora deveria buscar a sua individualidade expressiva. Em nome do original, a personalidade deveria se manifestar de maneira única e inconfundível nas obras.
Escrita crítica
Deve-se frisar este ponto: desde o modernismo, um escritor ou escritora deve ser capaz de desenvolver um estilo próprio, particular, que traduza a sua visão de mundo. Ao mesmo tempo, emular referências do passado, unicamente copiar formas e temas da tradição perderam qualidade estética.
A proposta de individualidade expressiva do modernismo trazia consigo um outro pressuposto. O autor ou autora agiria como um crítico literário. Em sua relação com o cânone e a tradição, em sua relação com a realidade ao seu redor e as infindáveis fontes de inspiração, caberia ao autor ou autora escrutinar, analisar, selecionar.
A imitação e a cópia ainda estavam presentes. Funcionavam, todavia, apenas como um entre diversos elementos disponíveis para a construção de uma voz autêntica e original na escrita. E aqui a originalidade ganhava um sentido culturalmente amplo: os primeiros modernistas davam grande importância à formação de uma literatura distintamente brasileira, enraizada nas culturas do país.
Não é arriscado afirmar que o projeto modernista teve sucesso parcial. O século XX assistiu ao fortalecimento da literatura brasileira, com dezenas de autores, autoras e livros marcantes. Mas o país ainda sofre as agruras do colonialismo, que vem se fortalecendo pelo mundo neste século XXI, suas manifestações culturais se espalhando pela internet.
Vê-se no ambiente digital vastos testemunhos de uma literatura anacrônica, na qual quem escreve, perdido no vácuo de um individualismo inoperante, ignora o que é um autor ou autora. Escritas que são uma cópia do passado - tanto distantes como os românticos quanto recente como os modernistas - ou de uma literatura estrangeira.
Não é arriscado afirmar que o projeto modernista teve sucesso parcial. O século XX assistiu ao fortalecimento da literatura brasileira, com dezenas de autores, autoras e livros marcantes. Mas o país ainda sofre as agruras do colonialismo, que vem se fortalecendo pelo mundo neste século XXI, suas manifestações culturais se espalhando pela internet.
Vê-se no ambiente digital vastos testemunhos de uma literatura anacrônica, na qual quem escreve, perdido no vácuo de um individualismo inoperante, ignora o que é um autor ou autora. Escritas que são uma cópia do passado - tanto distantes como os românticos quanto recente como os modernistas - ou de uma literatura estrangeira.
É um grave desvio de curso.
O mundo contemporâneo está tomado por crises, como, por exemplo, as crises climática e ecológica, o recrudescimento do autoritarismo e da desigualdade em escala planetária, ou a intensificação do colonialismo. Nesse contexto, o papel do autor ou autora brasileiros novamente se transforma. Ele deve aprofundar ainda mais a crítica. Ser ainda mais um antropófago dos outros e de si mesmo.
O projeto modernista se encontra pela metade. É preciso continuá-lo.
Crítica Literária
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